Uma pequena introdução para uma canção anotada[1]

Em novembro de 2019, fui duplamente surpreendida pela súbita visibilidade de quatro garotas de Valparaíso, no Chile, integrantes do grupo LASTESIS, que compuseram uma performance feminista capaz de dar a volta ao mundo. Rapidamente ensaiada e reproduzida por multidões de mulheres em todos os países do continente, e sem nenhum respaldo da mídia, continuou a sua lufada expansiva a caminho da Europa, da Ásia e do Oriente Médio. Fiquei espantada também ao saber que as autoras desse extraordinário hit das mulheres ficaram falando por toda parte que, na base dessa composição, havia a leitura de textos meus. Isso me alegrou muito, mas também provocou em mim uma grande curiosidade: onde estaria a minha contribuição para umas estrofes tão contagiantes quanto capazes de espalhamento em massa? Poderia a teoria, com seu esforço de identificação da estrutura subjacente à violência de gênero, hospedar-se nessa tão popular criação como Un violador en tu camino? Confesso que eu duvidei. Porém a minha incredulidade se dissipou um dia, quando sentei diante do texto da performance para analisá-lo. O resultado foi de fato surpreendente. Naquele momento, descobri a capacidade fascinante das companheiras chilenas para condensar significações complexas na lírica contagiante daquela canção. E então, ao lado das estrofes, registrei afirmações que fazem parte das minhas análises a respeito da violência machista e que estão presentes em meus textos, minhas conferências e entrevistas, como pode ser lido na canção anotada que se segue a este relato. Desse estranho evento, chama a atenção o ineditismo da velocidade com que a performance percorreu o planeta e foi reinterpretada em países distantes e em línguas longínquas, ainda mais porque fez isso sem qualquer colaboração da mídia convencional, cuja cobertura fui gritantemente escassa. A respeito disso, pensei em duas razões: a primeira é que a conexão que gerou com mulheres tão diferentes e de civilizações tão distantes em sua grande diversidade mostra nitidamente que, apesar de tal diversidade, elas têm algo em comum, que é a violência que sofrem; a segunda é que pode se “escutar” o que o poema traz: ele carrega consigo um pensamento codificado, compactado e oculto, prenhe dessa potência, apesar e por trás da aparente simplicidade do nível manifesto do texto − como nos sonhos, na arte e na literatura, há dois níveis de significação, o manifesto e o latente que se capta ainda que sem ser percebido, isto é, inadvertidamente. 

O patriarcado é um juiz,
que nos julga por nascer Venho falando da suspeita moral que paira sobre nós mulheres como consequência de uma estrutura mítica universal arcaica – no Ocidente, o mito de Adão

e o nosso castigo
é a violência que você não vê Eu disse que a violência moral é que nem o ar que respiramos, difícil de identificar por se tratar da normalidade na ordem política em que nascemos – a ordem política patriarcal

O patriarcado é um juiz,
que nos julga por nascer
e o nosso castigo é a violência que agora você vê. Disse que, após setenta anos de reflexões teórico-políticas feministas, podemos enxergar aquilo que era invisível, como o ar que respiramos

É feminicídio.
Impunidade para o assassino.
É o desaparecimento.
É o estupro.

E a culpa não era minha, nem de onde eu estava e nem da minha roupa.
E a culpa não era minha, nem de onde eu estava e nem da minha roupa. 

E a culpa não era minha, nem de onde eu estava e nem da minha roupa. 

E a culpa não era minha, nem de onde eu estava e nem da minha roupa.

O estuprador era você. 

O estuprador é você.
São os pacos (os policiais),
os juízes,
o Estado,
o presidente. Escrevi que o estuprador não é um desviado e nem um desobediente, mas o contrário disso − é o sujeito mais moralizante de todos, pois é aquele que impõe a obediência da ordem patriarcal

O Estado opressor é um macho estuprador. Disse que o Estado é a etapa final da política masculina, que expropriou das mulheres a sua própria política. 

O Estado opressor é um macho estuprador. Disse que na base da ordem opressiva binária está a distinção estatal entre questões centrais, ligadas à política, e questões marginais, secundárias, parciais ou particulares; a invenção das minorias, a minorização, inclusive a absurda categorização da mulher como “minoria”, e a despolitização, que é a retirada de tudo o que nos diz respeito e nos acontece do campo daquilo que é considerado plenamente público.

O estuprador era você.
O estuprador é você.
Dorme tranquila, menina inocente, 

sem se preocupar com o bandoleiro, 

que por seu sonho doce e sorridente 

zela o seu amante carabineiro. Como podemos ver no Chile e em todos os sistemas autoritários e policiais, quem diz zelar por seu sonho é aquele que a estupra: é o sujeito que se coloca na posição de guardião da moral.

O estuprador é você.
O estuprador é você.
O estuprador é você. 

O estuprador é você.

 

Tradução de Damian Kraus

Sobre a autora

Rita Segato é antropóloga argentina e professora emérita da Universidade de Brasília (UnB) – onde lecionou entre 1985 e 2010 –, titular da Cátedra Unesco de Antropologia e Bioética e coordenadora da Cátedra Aníbal Quijano do Museu Reina Sofia, Espanha, entre outros títulos e cargos. 

Notas

1. Publicado originalmente in Longoni, Ana e Diéguez, Ileana (eds.), Incitaciones transfeministas, coleção Pensamiento Situado. México e Madri: UAM-Cuajimalpa/Museu Reina Sofía/editora DocumentA/Escénicas, 2021. Uma primeira versão dos comentários dos versos da canção havia aparecido na revista on line italiana Dinamopress em 20 de junho de 2020.

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