A presente análise trata do que chamarei aqui de “estupro cruento”, na falta de um termo mais adequado. Estupro cruento é aquele perpetrado no anonimato das ruas, por pessoas desconhecidas, anônimas, e no qual a persuasão joga o papel menor, sendo a força ou a ameaça de uso de força o meio pelo qual o ato é realizado. Trata-se do tipo de estupro que, com mais facilidade, aos olhos do cidadão comum e pouco advertido sobre as questões de género, se enquadra na categoria de crime. À diferença de outras formas de violência de género, é mínima sua ambiguidade enquanto ato cruento, feito possível pelo potencial de força física e o poder de morte de um individuo sobre outro. Por isto mesmo, a maioria absoluta dos presidiários por crimes contra a liberdade sexual se encontra enquadrada neste tipo de crime, embora ele represente uma parcela insignificante das formas de violência sexual ou até, muito provavelmente, das formas de sexo forçado. Como é sabido, as estatísticas são falhas e os processos escassos quando se trata de abuso incestuoso ou assédio ocorrido na privacidade de vida doméstica.
Apesar de estar ciente de que as categorias jurídicas são bastante variáveis de um país para outro[2], não usarei aqui a noção de estupro em quaisquer de suas acepções legais, mas no sentido corriqueiro e, no meu entender, mais adequado, de qualquer forma de sexo forçado por um indivíduo com poder de intimidação sobre outro. Prefiro referir-me ao estupro como o uso e abuso do corpo do outro, sem que este outro participe com intenção ou envolvimento compatível.
A significação do “estupro cruento”
O estupro cruento é o tipo de crime menos representado numericamente entre as formas de violência sexual. Como é sabido, a violência doméstica e os abusos cometidos na intimidade do lar entre pessoas emparentadas são as formas mais comuns e frequentes desses crimes, constituindo, para as estatísticas conhecidas nas mais diversas localidades do Brasil e do exterior, aproximadamente 70% das ocorrências. Assim, ele perde amplamente, nas estatísticas dos fatos e também na literatura existente, para o grande tema da violência doméstica, muito mais corriqueiro na vida e mais frequentemente abordado pelos estudos de crimes sexuais. Outrossim, a relativamente pouca literatura sobre o estupro cruento é quase toda ela de ordem pragmático, baseada em estatísticas, e consistente em instruções destinadas ao público feminino sobre como evitar o crime ou sobre o que a vítima deve fazer após tê-lo sofrido.
Contudo, a pesar de sua incidência relativamente baixa, gostaria de chamar a atenção aqui para o interesse de compreendê-lo, já que estou convencida de que ele não somente nos proporciona uma das chaves da inteligibilidade das agressões de gênero em geral, e da natureza estruturalmente conflitiva destas relações, mas oferece pistas valiosas para a compreensão do fenômeno da violência em geral. Isto é assim em função da destilada irracionalidade do crime de estupro. Como tentarei argumentar, ele se apresenta como um ato violento quase em estado puro, ou seja, isento de finalidade instrumental.
Da forma em que ele emerge de inúmeros relatos de presos condenados por estupro, poderia se dizer, numa paráfrase daquela clássica expressão sobre o significado da obra de arte na modernidade que fala da “arte pela arte, que o estupro na sociedade contemporânea é um fenômeno de “agressão pela agressão”, sem finalidade ulterior em termos pragmáticos. E ainda quando ele se reviste de alguma suposta finalidade, revela-se, em última instância, como a emergência de uma estrutura sem sujeito, uma estrutura onde a possibilidade de consumissão do ser do outro pelo usufruto do seu corpo é a caução ou o horizonte que faz possível, em última instância, todo valor ou significação. Repentinamente, um ato violento sem sentido atravessa um sujeito e sai à superfície da vida social como revelação de uma latência, de uma tensão que pulsa no substrato da ordenação hierárquica da sociedade.
Desde o início da pesquisa tive a certeza de que, se tivéssemos a oportunidade e a disposição de escutar atentamente o que poderiam nos dizer homens que foram capazes de perpetrar este crime, nos aproximaríamos do enigma que reveste, tanto para eles quanto para nós, o impulso agressivo próprio e característico do sujeito masculino para com quem exibe os signos e trejeitos da feminidade. Falar disto, já neste parágrafo inicial, não resulta simples: vejo-me obrigada, ainda tão cedo, a fazer referência a um “sujeito masculino” em contraposição a “quem exibe significantes femininos” em lugar de utilizar os habituais “homem” e “mulher” porque, na verdade, nem o estupro – enquanto uso e abuso do corpo do outro – é uma prática exclusiva dos homens, e nem sempre são mulheres as que o sofrem. Não podemos, nem por um instante, contentar-nos com o literal ou o que parece ser autoevidente, pois isso nos deixa a cada momento mais distantes de aceder às estruturas que estão por trás dos comportamentos que observamos. Contudo, assim como um sujeito identificado com o registro afetivo masculino é habitualmente um homem, é, também, estatisticamente mais provável que os significantes da feminidade estejam associados à mulher.
Esta digressão se torna especialmente – mas não exclusivamente – pertinente quando trabalhamos, por exemplo, no ambiente do presídio, onde, apesar de encontrarmo-nos num meio povoado por anatomias de homens, a estrutura de gênero reaparece, como estrutura de poder, e com ela o uso e abuso dos corpos de uns por outros[3]. Apesar do dito, e como consequência da inércia constitutiva da linguagem e da persuasão irresistível que os significantes exercem sobre nós, o meu discurso aqui sobre o feminino e o masculino escorregará inescapavelmente, uma e outra vez, para os significantes homem e mulher. Deixo-os, portanto, desde já, instalados, mas com ressalvas.
A visão do estupro que se segue baseia-se, de forma bastante livre e especulativa, em análises de prontuários e depoimentos de estupradores[4]. Trata-se de depoimentos de homens encarcerados que, embora temerosos, estão quase sempre dispostos a falar e ansiosos por ser escutados. Homens que, depois comprovaríamos, elaboram incansavelmente, ao longo dos seus anos de confinamento, o evento e as circunstâncias dos seus crimes, lançando mão dos parcos recursos analíticos e expressivos com que, em cada caso, contam. Sua reflexão sobre os atos cometidos é de grande valor e raramente ultrapassa os muros da cadeia. Bisbilhotar nas suas motivações, nas suas estratégias de autojustificação e, enfim, na sua própria compreensão dos atos perpetrados é da máxima relevância pois eles são atores principais na tragédia do gênero e testemunhas da quase inescapabilidade do destino que essa estrutura traça para todos nós. É pelas mãos deles que se atinge a evidência última do que esse destino se trata, e é pelas confissões deles que podemos começar a vislumbrar o mandato que o gênero faz pesar sobre nós. Com isto, fazemos uma contribuição num campo onde a literatura ainda é relativamente escassa, inclusive em países como os Estados Unidos onde o estupro é um crime de tão alta incidência.
A dimensão sociológica do estupro
Tanto as evidências históricas como as etnográficas mostram a universalidade da experiência do estupro. O acesso sexual ao corpo da mulher sem seu consentimento é um fato sobre o qual todas as sociedades humanas têm ou tiveram notícias. Por baixo deste nível meramente factual, se escondem outros que devem ser considerados. É, justamente, para indicar tal multiplicidade de níveis de compreensão deste fenômeno – que o fazem, num sentido, ser um e o mesmo e, ao mesmo tempo, o transformam numa quantidade de fenômenos diversos – que falo aqui de uma fenomenologia. No plano étnico, as evidências mostram que não existe sociedade que não conheça o fenômeno do estupro. Contudo, é notável a variação da incidência desta prática, existindo sociedades – tipicamente a dos Estados Unidos da América do Norte – onde esta incidência é máxima, e outras onde se reduz a casos extremamente esporádicos e singulares, dependendo isto da cultura e, particularmente, da forma que assumem as relações de gênero numas e outras culturas. Num estudo comparativo de 156 sociedades tribais, Peggy Sanday (1981) conclui que existem sociedades “propensas ao estupro” e “sociedades livres de estupro”. Contudo, entre as sociedades livres de estupro a autora inclui aquelas onde este ato é “raro” e, em artigo mais recente, passa a considerar que:
Por livre de estupro não quero implicar que o estupro esteja totalmente ausente. Na Sumatra Ocidental, por exemplo, durante o ano de 1981, dois relatórios policiais contaram 28 estupros para uma população de três milhões. Este número pode ser comparado com os mais de 82.000 casos ‘fundados’ de estupro anotados nos Relatos de Crimes Regulares dos Estados Unidos em 1982. Trabalhos de campo nas duas sociedades confirmam a classificação da Sumatra Ocidental como livre de estupros, com relação aos Estados Unidos, que são propensos ao estupro. (Sanday 1992: 91)
O que se destaca nas evidências etnográficas é que nas sociedades tribais, sejam índios americanos ou sociedades Polinésias ou Africanas, o estupro tende a ser um ato punitivo e disciplinador da mulher, sendo praticado em grupo contra uma vítima que se tornou vulnerável por ter profanado segredos da iniciação masculina, por não contar ou ter perdido a proteção do pai ou dos irmãos, ou por não estar usando alguma prenda do vestuário que sinaliza que ela conta com essa proteção ou acata seu pertencimento ao grupo. Também, entre as sociedades indígenas, existe a prática das guerras por mulheres, ou seja, do sequestro de mulheres de outros grupos para casar, o que implica um certo tipo de estupro para apropriação da capacidade reprodutiva da mulher (ver Laraia, n/d). Neste sentido, pode-se dizer que o estupro é, nessas sociedades, geralmente, uma prática regulamentada, prescrita dentro de determinadas condições, e não reviste o caráter de desvio ou crime que tem para o nosso senso comum.
Contudo, também nas sociedades modernas o estupro pode ser praticado em gangues e, segundo revelam os nossos dados, paira sobre ele a intenção punitiva. De fato, tanto na dimensão histórica como nas suas variantes culturais, é possível que as diferenças aparentes do fenômeno decorram de variações na manifestação de uma mesma estrutura hierárquica, tal seja, a estrutura de gênero. Na verdade, a pergunta que se coloca é se a questão territorial e de estado na qual o estupro se inscreve nas sociedades pré-modernas, ou o caráter de domesticador da mulher insubordinada que ele assume nas sociedades tribais se encontram totalmente distantes da experiência urbana contemporânea. Apesar de que, neste novo contexto, o ato cometido dirige-se agora ao disciplinamento de uma mulher genérica e já não concreta, ou implica num desafio dirigido a um outro homem também sem identidade definida, ambos componentes ressoam, de alguma forma, nos relatos dos estupradores entrevistados. Sendo assim, poderia tratar-se de uma conduta que diz respeito a uma estrutura que, apesar da variação das suas manifestações históricas, se reproduz num tempo “monumental” (Kristeva 1981), filogenético. Uma estrutura ancorada no terreno do simbólico e cujo epifenómeno são as relações sociais, as interações concretas entre homens e mulheres históricos (ver el capítulo 2).
No plano histórico, o estupro acompanhou as sociedades através das épocas e nos mais diversos regimes políticos e condições de existência. A pesquisa já clássica de Susan Brownmiller (1975) reúne evidências disto que tem sido, também, tema de outros autores (Shorter 1975 e 1977). A grande divisória de águas se dá, contudo, entre sociedades pré-modernas e modernas. Nas primeiras, o estupro tende a ser uma questão de estado (Tomaselli 1992: 19-21), uma extensão da questão da soberania territorial, já que, como o território, a mulher e, mais exatamente, o acesso sexual à mesma, é mais um patrimônio, um bem, pelo qual os homens competem entre si. Numa extensão interessante disto, Richard Trexler (1995) examina como, por exemplo, na Conquista da América (assim como entre os povos autóctones e entre os europeus nas práticas anteriores ao seu encontro), a linguagem do gênero esteve associada ao processo de subordinação pela guerra. Evidências da feminização do índio – ou de sua infantilização – há também na bibliografia brasileira (Baines 1991, Ramos 1995), tornando, uma vez mais, os termos “conquistado”, “dominado”, “assujeitado” e “feminino” equivalentes.
Isto vai se transformando com o advento da modernidade e o individualismo que, pouco a pouco, fez extensiva a cidadania à mulher, transformando-a em sujeito de direito a par do homem. Com isso, em condições de modernidade plena ou avançada, ela deixa de ser uma extensão do direito de outro homem e, portanto, o estupro deixa de ser uma agressão que, transitivamente, atinge um outrem através do corpo dela, para ser entendido como um crime contra a pessoa dela. Na verdade, poderia se dizer que é somente com o advento da modernidade que o estupro passa a ser um crime no sentido estrito do termo. Antes dela, ele pode ser considerado como um ato regulado pelas relações sociais, cuja ocorrência é associada a determinadas circunstâncias na ordem social.
A lei brasileira, ao preservar a ideia do “crime contra os costumes” e não “contra a pessoa”, prolongava a noção pré-moderna de que se trata de uma agressão que, através do corpo da mulher, atinge um outrem e, neste, ameaça a sociedade como um todo, colocando em risco direitos e prerrogativas do seu pai e seu marido, como, entre outros, o controle sobre a herança e a continuidade da linhagem. A figura legal da “legítima defesa da honra”, consuetudinariamente invocada nas cortes brasileiras, deixa evidente, por sua vez, o resíduo da sociedade de status, pré-moderna, que precede à sociedade moderna e contratual constituída por sujeitos sem marca (de gênero ou raça), que entram no direito em pé de igualdade. O crime por honra indica que o homem é alcançado e tocado na sua integridade moral pelos atos das mulheres a ele vinculadas.
Ler a lei brasileira nesta perspectiva é importante pois percebe-se, assim, que não é a vítima, na sua individualidade e direito cidadão, o que a lei contra o estupro vem a proteger, mas a ordem social, “o costume”. A exclusividade do estupro vaginal, e a exclusão do termo legal de outros tipos possíveis de violação sublinha este sentido, onde é a herança e continuidade da linhagem o que interessa resguardar em primeiro lugar. Percebe-se, também, a extraordinária lentidão do tempo de gênero, o cristal quase inerte das suas estruturas.
Ainda, no mundo contemporâneo, situações de guerra tornam transparente o fato de que o atrelamento da mulher ao status masculino ainda se encontra vigente. Isto foi o que demostraram, recentemente, os estupros em massa de mulheres durante a guerra da Iugoslávia. É interessante constatar, no relato de Bette Denich, o aspecto de ofensiva e toma de territórios que o estupro voltou a assumir nessa guerra:
Perpretadores masculinos se apropriaram das mulheres simultaneamente como objetos de violência sexual e como símbolos numa contesta com homens rivais que replicou as formas tradicionais do patriarcado nos Balcãs, onde a inabilidade dos homens de proteger “suas” mulheres e de controlar sua sexualidade e poderes procriativos é percebida como um sintoma crítico de debilidade […] O elemento adicional da impregnação forçada das mulheres cativas revelou um componente ideológico intencional para a violência sexual, já que os soldados justificaram o estupro como método para procriar seu próprio grupo étnico… (1995: 68)
Esta reemergência ou simultaneidade do pré-moderno com o moderno lembra-nos da tese de Carole Pateman que, contestando Freud, Lévi-Strauss e Lacan, não vê no assassinato do pai o ato violento que funda a vida em sociedade deixando passo a um contrato entre iguais, mas num momento ainda precedente que fala da possibilidade de dominação do patriarca. Pateman, numa cadeia argumentativa simultaneamente mítica e lógica, aponta para o estupro, no sentido de apropriação por força de todas as fêmeas da sua horda por parte do macho-pai-patriarca primitivo, como o crime que dá origem à primeira Lei, a lei do status – a lei do gênero. O assassinato do pai marca o início de um contrato de mútuo reconhecimento de direitos entre homens e, enquanto tal, é posterior ao estupro ou apropriação das mulheres pela força, que marca o estabelecimento de um sistema de status. Com efeito, para Pateman, o estupro – e não o assassinato do pai que põe fim ao incesto e permite a promulgação da Lei que o proíbe – é o ato de força originário, instituinte da primeira Lei, do fundamento da ordem social.
A lei do status desigual dos gêneros é, assim, para esta autora, anterior ainda ao contrato entre homens que deriva do assassinato do pai. A regulação pelo status precede a regulação contratual. A lei é formulada inicialmente dentro de um sistema já existente de status e referida à proteção e manutenção do status masculino. Uma vez instaurado o sistema de contrato entre pares (ou homens), a mulher passa a ser protegida enquanto atrelada ao domínio de um homem participante deste contrato, ou seja, o sistema de status persiste, ativo, no interior do sistema de contrato. Se com a modernidade plena, a mulher passa a ser parte do sistema contratual, para Pateman, o sistema de status inerente ao gênero continua a acenar e pulsar por trás da formalidade do contrato, nunca desaparecendo por completo e fazendo que, no tocante às relações de gênero, o sistema contratual nunca possa obter uma vigência plena – as peculiaridades e contradições do contrato matrimonial assim como o acordo fugaz que se estabelece na prostituição mostrariam, para esta autora, a fragilidade da linguagem contratual quando se trata de gênero.
Os achados de Sophie Day entre as prostitutas londrinas, embora não interpretados desta forma pela própria autora, parecem providenciar uma ilustração deste conflito de estruturas fundantes. No contexto do seu trabalho, essas prostitutas incluem na noção de estupro toda e qualquer forma de ruptura unilateral do contrato estabelecido com o cliente por parte deste último. São, assim, consideradas como estupro todas as infrações ao acordo, como não pagamento do serviço, devolução de um cheque sem fundo, não utilização ou retirada unilateral do preservativo, tentativa de realizar formas particulares de sexo não acordadas previamente ou uso de força física. “A ruptura de contrato é classificada como estupro” (Day 1994: 185). Acredito que o uso da categoria “estupro” deste forma “inclusiva”, como a autora a descreve (Ibidem: 179), não é casual nem circunscrita mas torna manifesta uma teoria nativa, das próprias prostitutas, perfeitamente compatível com o modelo de Pateman e que poderia se fazer extensiva ao estupro em geral e não somente no marco profissional das trabalhadoras do sexo: o estupro é justamente a infração que vem a demonstrar a fragilidade e superficialidade do contrato quando de relações de gênero se trata, e o estupro é sempre uma infração de contrato, colocando em evidência, em qualquer contexto, o atrelamento dos indivíduos a estruturas hierarquicamente constituídas. No plano simultaneamente mítico e lógico em que Pateman formula o seu modelo, é justamente o estupro – e não o assassinato do pai, como no modelo Freudiano de Totem e Tabu – que instaura a primeira lei, a ordem do status e é, portanto, no estupro que ela é ciclicamente restaurada, revitalizada.
Neste contexto argumentativo, onde se aponta para o fato de que as relações de gênero obedecem a estruturas de ordem muito arcaica e respondem a um tempo extraordinariamente lento, eu acrescentaria o estupro como uma situação onde um contrato que deveria regular as relações entre indivíduos na sociedade moderna se mostra ineficiente para controlar o abuso de um gênero pelo outro, derivado de um pensamento regido pelo status.
De fato, somente na sociedade contratual passa a mulher a ser protegida pela mesma lei que rege as relações entre homens enquanto sujeitos de direito. Contudo, afirma Pateman, a estrutura de gênero nunca passa a ser inteiramente contratual, sendo o status o seu regime permanente. No caso particular do estupro enquanto agressão a um outro homem através da apropriação de um corpo feminino, enquanto conquista territorial ou como crime contra a sociedade e não contra a pessoa, constatamos, uma vez mais, o afloramento do regime de status próprio da estrutura hierárquica de gênero, apesar do contexto moderno e supostamente contratual.
Isto é aqui relevante porque somente este tipo de consideração permite fazer sentido da afirmação, uma e outra vez, por parte de condenados por estupro, de que não tinham inteiramente claro que estavam cometendo um crime à hora de perpetrá-lo. Longe de ignorar ou desconfiar desse tipo de afirmação, devemos entender o que ela significa, particularmente numa cidade como Brasília: trata-se do lado perverso da sobrevivência de um sistema pré-moderno, ordenado pelo regime hierárquico de status, pelo qual a apropriação do corpo feminino, dentro de determinadas condições, não constitui necessariamente crime. Dita apropriação, no meio tradicional do qual se desprenderam no escasso termo de uma geração a maioria dos estupradores entrevistados, era regulada pela comunidade, que vigiava diligentemente a articulação do status com o contrato de não agressão e respeito mútuo entre patriarcas. E ainda quando esta apropriação do corpo feminino (ou feminizado pelo próprio ato da sua subordinação) se dá numa situação de suposta modernidade plena, como não é incomum, ele ocorre na superposição de dois sistemas: um que eleva a mulher a um status de individualidade e cidadania igual ao do homem, e o outro que lhe impõe a sua tutela. Este último continua a ditar, como comprova Lloyd Vogelman no seu revelador estudo da mentalidade de estupradores na África do Sul, que “mulheres que não são a propriedade de um homem (aquelas que não estão numa relação sexual exclusiva) são percebidas como propriedade de todos os homens. Em essência, elas perdem sua autonomia física e sexual” (1991: 78). Esta norma é oriunda de um sistema de status, que rege o gênero e continua a emergir demostrando a sua vitalidade não abalada.
É necessário ouvir e tentar entender o que está sendo dito nas repetidas afirmações de prévia ignorância da lei por parte dos condenados de Brasília. Somente esta compreensão pode levar-nos a estratégias eficazes de prevenção. Eles podem apontar para a existência de um tipo de sujeito desorientado perante o confronto trágico e agonístico entre duas ordens normativas cuja competência não foi resolvida na passagem abrupta e desordenada do mundo tradicional para a modernidade. Isto sugeriria que, num contexto como este, o crime de estupro ocorre na passagem incerta do sistema de status para o sistema de contrato pleno entre iguais, no lusco-fusco de uma transição de um mundo para outro sem associação com uma formulação discursiva satisfatória e ao alcance de todos. Sem dúvida, as caraterísticas da cidade de Brasília, com suas gigantescas extensões vazias, a origem migratória da maior parte de sua população e a consequente ruptura com o regime de comunidade, suas normas tradicionais reguladoras do status dentro do contrato social e sua ativa vigilância sobre o cumprimento das mesmas tem um papel importante na notável incidência relativa do estupro entre os crimes que nela se perpetram. A fórmula brasiliense: grandes distâncias e pouca comunidade, constitui o caldo de cultivo ideal para este crime.
Pelo dito, poderia se afirmar que, quanto mais abrupto e abrangente o processo de modernização e brusca a ruptura dos laços comunitários, menos elaborado discursivamente será o recuo do sistema de status e sua capacidade de regular o comportamento social. As consequências são tanto as brechas de descontrole social abertas por este processo de implantação de uma modernidade pouco reflexiva, como também o desregulamento do sistema de status tradicional, deixando exposto seu lado perverso, por onde reemerge o direito natural de apropriação do corpo feminino quando percebido em condições de desproteção, ou seja, o afloramento de um estado de natureza.
O caráter responsivo do ato e suas interpelações
É justamente aqui, no contexto desta apreciação da relação sempre tensa entre status e contrato, por um lado, e do solo arcaico em que as relações de gênero se ancoram, pelo outro, que é possível entender uma série de temas que recorrem no discurso dos estupradores e que sugerem que este crime se encontra triplamente referido:
Como punição ou vingança contra uma mulher genérica que saiu do seu lugar, ou seja, da sua posição subordinada e ostensivamente tutelada num sistema de status. Isto é assim, já seja por exibir os signos de uma socialidade e de uma sexualidade autonomamente geridas ou, simplesmente, por encontrar-se fisicamente longe da proteção ativa de outro homem. O mero deslocamento da mulher para uma posição não destinada a ela na hierarquia do modelo tradicional desafia a posição do homem nesta estrutura, já que o status é sempre um valor num sistema de relações. Mais ainda, em relações marcadas pelo status, como o gênero, é justamente a expensas da subordinação do outro que o polo hierárquico se constitui e se realiza.
- É como dizer: não existe o poder sem a subordinação, ambos são os subprodutos de um mesmo processo, de uma mesma estrutura, feita possível pela extorsão de ser de um pelo outro. Em sentido metafórico, mas, em ocasiões, também literal, o estupro é um ato canibalístico, onde o feminino é coagido a colocar-se no lugar de doador: da força, de poder, de virilidade.
Percebe-se, aqui, o estupro como um ato disciplinador e vingador contra uma mulher genericamente abordada. A injunção de puni-la e retirar-lhe sua vitalidade é sentida como forte, inescapável. Neste sentido, o estupro é ainda uma punição e o estuprador, na sua concepção, um moralizador. “Somente a mulher crente é boa”, nos disse um interno, o que quer dizer: “somente esta não merece ser estuprada”, o que, por sua vez, significa: “toda mulher não rigidamente moral é passível de estupro”. Paira sobre a mulher uma suspeita que o estuprador não consegue suportar, pois essa suspeita reverte sobre ele, sobre sua incapacidade de deter o direito viril e a capacidade de exercer controle sobre ela. Com a modernidade e a consequente exacerbação da autonomia das mulheres, esta tensão, naturalmente, se agudiza.
Ao enfatizar o caráter genérico da mulher abordada indico justamente isso: que se trata de qualquer mulher, e que a sujeição dessa qualquer mulher torna-se necessária para a economia simbólica do estuprador como índice de que o equilíbrio da ordem de gênero permanece intocado ou foi restabelecido. Isto coincide com a formulação de Sharon Marcus de que a interação do estupro responde a um “roteiro”, no sentido de uma interlocução fixa estruturada por uma “gramática de violência marcada pelo gênero” (“gendered grammar of violence”, Marcus 1992: 392). A mulher genérica a que faço referência é a mulher sujeita ao papel feminino neste drama, a mulher fixamente roteirizada nesta estrutura gramatical que opõe sujeitos e objetos de violência marcados pelo gênero. Por isso, alega esta autora, perturbar este roteiro, quebrar a sua previsibilidade e a fixidade do seus papeis pode ser uma das formas de “assestar um golpe mortal na cultura do estupro” (Ibidem: 400).
Como agressão ou afronta contra outro homem também genérico, cujo poder é desafiado e seu patrimônio usurpado através da apropriação de um corpo feminino ou num movimento de restauração de um poder perdido para ele. Mieke Bal, na sua análise de duas pinturas de Rembrandt sobre o estupro de Lucrécia, faz uma síntese desta ideia alinhavando o legado de outros que pensaram e registraram esta percepção do sentido do crime:
‘Os homens estupram o que outros homens possuem’, escreveu Catherine Stimpson (1980: 58); ‘falso desejo’ é a definição de Shakespeare, oferecida já no segundo verso da sua Lucrécia. ‘Aimer selon l’autre’ é a frase de René Girard (1961); Between Men é o título do livro de Eve Sedgwick (1985). Todas essas expressões sugerem porque os homens estupram; elas também dizem respeito ao que é o estupro: um ato semiótico público. Além de ser violência física e assassinato psicológico, estupro é também um ato de linguagem corporal falado a outros homens através, e no, corpo de uma mulher. (Bal 1991: 85)
Isto é particularmente caraterístico de sociedades de apartheid racial ou social, onde fortes barreiras de exclusão e marginalização se fazem sentir. É já clássico o estupro do homem negro, tão presente na literatura sociológica (ver, por exemplo, Vogelman, op.cit.: 135). Mas não podemos deixar de lembrar aqui da crítica de bell hooks (1992) a um tipo de interpretação que naturaliza e justifica a aspiração do homem negro a aceder às prerrogativas do patriarca branco no sistema de status. Ela adverte que poderia não ser assim e, de fato, afirma ter conhecido homens que buscaram outras soluções e criaram outros arranjos familiares e sociais por onde a restauração do status por meio da subordinação da mulher face a outros homens não se tornara imprescindível. Desta forma, bell hooks desmonta o que poderíamos chamar de hipótese da determinação funcional e homeostática (no sentido de reparação de um equilíbrio perdido) do estupro. Com efeito, é necessária uma crítica da injunção do estupro num sistema de status, mediante a afirmação de que outras soluções mais felizes para as relações de gênero são possíveis. Em outras palavras, bell hooks, com sua lúcida e já clássica reflexão sobre a sexualidade do homem negro, nos indica que não devemos ver a reparação do status masculino mediante a subordinação violenta da mulher como uma saída inevitável e previsível para o “problema” da masculinidade malograda, em contextos de extrema desigualdade onde os homens excluídos não mais tem condições de exercer a autoridade a eles destinada pela patriarcado.
Como uma demonstração de força e virilidade para uma comunidade de pares, que visa garantir ou preservar um lugar entre eles provando, perante os mesmos, que se tem
- competência sexual e força física. Isto é característico nos estupros por gangs, tipicamente perpetrados por jovens e usualmente os mais cruéis. Contudo, em muitos dos depoimentos escutados, ainda que se trate de um crime solitário, mantem-se esta intenção de fazê-lo com, para ou perante uma comunidade de interlocutores masculinos capazes de outorgar um status igual ao perpetrador. Ainda que a gang não se encontre fisicamente presente durante o estupro, ela faz parte do horizonte mental do estuprador jovem. E é nestes interlocutores em sombra que o ato de agressão encontra seu sentido mais pleno e não, como poderia pensar-se, num suposto desejo de satisfação sexual ou de roubo de um serviço sexual que, de acordo com a norma, deveria ser contratado sob a forma de uma relação matrimonial ou no mercado da prostituição. Trata-se mais da exibição da sexualidade como capacidade viril e violenta do que da busca de prazer sexual.
Esta análise mostra o estupro preso numa teia de racionalidade que o torna inteligível enquanto discurso para outros, ou que encontra seu sentido naqueles personagens presentes na paisagem mental do estuprador e a quem este tipo de ato violento se dirige. Os três referentes apontados, contudo, não impedem que as maneiras de praticá-lo variem amplamente entre extremos que pareceriam não guardar relação entre si. As performances do ato podem oscilar entre uma busca do limite, onde a morte da vítima é a única resolução possível, até a montagem de uma cena, por parte do estuprador, onde a vítima é tratada com cuidado – como nos casos em que o estuprador cobre o chão onde a obrigará a deitar-se ou muda a forma do sexo a ser praticado após averiguar que a vítima é virgem, ambos registrados nos prontuários e depoimentos recolhidos. Estas modalidades, estilos, ou cenas, não mudam a racionalidade geral do ato perante outros. Na sua fantasia – aqui performaticamente representada –, o estuprador tenta constituir-se como mais sedutor ou mais violento, mas sempre perante outros, sejam estes seus competidores- e-pares na cena bélica entre homens que é o horizonte de sentido do estupro, ou a mulher transgressora que o emascula e o faz sofrer.
Em 1971, Menachem Amir, no seu estudo estatístico detalhado dos padrões de estupro na cidade de Filadélfia, coloca por primeira vez em evidência dois fatos cuja interrelação se torna aqui relevante: o primeiro deles é que a atribuição de psicopatologias individuais aos estupradores não procede, já que o estuprador é simplesmente um membro a mais entre os outros dentro de determinados grupos sociais, com valores e normas de comportamento compartilhados – ou o que Amir chama de “subculturas”:
Essa abordagem propõe, entre outras coisas, explicar a distribuição e os padrões diferenciais do crime e daqueles envolvidos nele, não em termos de motivações individuais e processos mentais não-duplicáveis que poderiam conduzir ao crime, mas em termos de variações entre grupos e suas normas culturais e condições sociais. Posto que os mais altos índices das ofensas estudadas ocorreram entre grupos relativamente homogêneos, assume-se, portanto, que estes grupos se situam numa subcultura. (Amir 1971: 319)
O segundo, é que os estupros perpetrados em companhia, ou seja, por grupos de homens ou gangs, são praticamente tão comuns quanto os praticados por indivíduos (Ibidem: 337).
Na obra que inaugura a discussão sobre estupro da forma que a conhecemos hoje, Susan Brownmiller (1975) valoriza a descoberta estatística de Amir e amplia suas conclusões e consequências, enfatizando a importância da falsificação do mito de que “o estuprador é um ofensor reservado e solitário” além de não ter “nenhuma patologia identificável fora dos desvios individuais e distúrbios da personalidade que poderiam caracterizar qualquer ofensor que comete qualquer tipo de crime” (Brownmiller 1975: 181-2). Brownmmiller também abre a “subcultura” de estupradores de Amir para épocas, sociedades e grupos sociais variados, compilando evidências em toda a extensão do espectro histórico, cultural e social. Como mencionarei mais tarde, esta “normalidade” do estuprador será ampliada ainda na formulação de uma tese feminista, nos trilhos da compilação de casos realizada por Browmiller num escopo universal. Evitam-se, também, assim, os riscos de uma teoria da “subcultura” violenta onde o estupro seria previsível, já que deslocaríamos a suspeita de um “tipo” psicológico para um “tipo” social, sem enquadrar nesta suspeita as sociedades como um todo e valores amplamente compartilhados e difundidos.
A ênfase da minha análise aqui, a partir de uma escuta ampla dos depoimentos recolhidos na cadeia, aponta para um estuprador que, ainda quando age só, poderíamos descrever como “acompanhado” para sua consciência como uma paisagem mental “com outras presenças”, e para um ato intimamente ligado ao mandato de interlocutores presentes no horizonte mental, no ambiente discursivo em que se realiza. Portanto, o meu modelo pressupõe uma estrutura dialógica, em sentido bakhtiniano, entre o estuprador e outros genéricos, povoadores do imaginário, onde o estupro, entendido como um ato expressivo, revelador de significados, encontra o seu sentido.
O enunciado está repleto dos ecos e lembranças de outros enunciados […] (e) deve ser considerado acima de tudo como uma resposta a enunciados anteriores dentro de uma dada esfera […]: refuta-os, confirma-os, completa-os, baseia-se neles […]. É por esta razão que o enunciado é repleto de reações-respostas a outros enunciados numa dada esfera da comunicação verbal […]. A expressividade de um enunciado é sempre, em menor ou maior grau, uma resposta, em outras palavras: manifesta não só sua própria relação com o objeto do enunciado, mas também a relação do locutor com os enunciados do outro. (Bakhtin 1992: 316-7)
O enunciado sempre tem um destinatário (com características variáveis, ele pode ser mais ou menos próximo, concreto, percebido com maior ou menor consciência) de quem o autor da produção verbal espera e presume uma compreensão responsiva. Este destinatário é o segundo […]. Porém, afora esse destinatário (o segundo), o autor do enunciado, de modo mais ou menos consciente, pressupõe um superdestinatário superior (o terceiro), cuja compreensão responsiva absolutamente exata é pressuposta seja num espaço metafísico, seja num tempo histórico afastado […]. Todo diálogo se desenrola como se fosse presenciado por um terceiro, invisível, dotado de uma compreensão responsiva, e que se situa acima de todos os participantes do diálogo (os parceiros). (Ibidem: 356)
Isto não é isento de consequências, já que, se é a injunção colocada por estes outros genéricos inoculados no horizonte mental do estuprador o que torna esse ato significativo,
inteligível, também é justamente essa presença que deverá ser suspensa, neutralizada, removida e substituída em qualquer processo de reabilitação que venha a resultar eficaz.
Dizer que o estupro deve ser compreendido como um ato em companhia implica enfatizar sua dimensão intersubjetiva. A galeria de “acompanhantes” ou interlocutores em sombras que participam deste ato é incorporada na vida do sujeito desde cedo e sempre confirmada desde então. Trata-se de uma apreensão dos outros marcada por uma compreensão da centralidade e da estrutura da diferença de gênero, assim como uma hipersensibilidade, trabalhada pela socialização, às exigências que essa diferença lhe coloca ao sujeito masculino para ele ser e ter identidade enquanto tal. Essas “companhias” silenciosas, que pressionam, se encontram incorporadas no sujeito e fazem, já, parte dele. Daí que possa se dizer que seu ato, seu crime é, mais que subjetivo, intersubjetivo: outros imaginados participam.
Nesta perspectiva, é possível interpretar o que eles próprios tentam dizer quando afirmam, reiteradamente, nas entrevistas realizadas, que “não fui eu” ou “fui eu, mas foi outro que me fez fazer”, “havia algo, alguém mais” cuja agência cobra incontestável corporeidade e poder determinante: álcool, droga, o diabo, um espírito que “incorporou”, um colega ou, até, num dos casos, um verdadeiro autor do crime, com nome e sobrenome, que, segundo o prontuário, o réu inventou. Com estes álibis, o estuprador não tenta meramente mentir ou escamotear sua culpa. Mais exatamente, tenta descrever e examinar a experiência de uma falta de autonomia que lhe deixa perplexo – os outros, dentro da sua consciência, às vezes, falam mais alto que sua razão propriamente subjetiva. Esta escuta rigorosa das palavras é fundamental para compreender um tipo de crime cujo sentido escapa à racionalidade não somente do pesquisador mas também dos seus próprios autores, justamente porque sua razão de ser não se esgota no indivíduo mas lhe vem de um campo intersubjetivo que deve ser considerado para tornar seu ato, “sua besteira”, como as vezes descrevem o crime, inteligível.
Porém, esta mesma característica aqui apontada pode abrir caminho para a transformação do sujeito e sua reabilitação, sempre e quando, numa perspectiva aqui mais fenomenológica do que estruturalista, aceitemos que “essa experiência do si mesmo, ou do si mesmo em relação a outro, é continuamente ajustada a fins e modulada pela circunstância ” (Jackson 1996: 27), acreditando que o estuprador pode se ver livre dos “fantasmas” que lhe acompanham e lhe fazem demandas para abrir-se e incorporar um mundo de outros transformados: uma mulher cuja liberdade não o ameace, uns companheiros que não lhe imponham condições para pertencer e uns antagonistas que não incluam suas mulheres como extensão das suas posses e da sua honra.
Modelos interpretativos: a perspectiva médico-legal, a perspectiva feminista e a perspectiva da injunção do poder na estrutura de gênero
O até aqui apontado converge em sugerir que o estupro sempre aponta para uma experiência de masculinidade fragilizada. E seria este o significado último do tão comentado estupro perpetrado no estuprador pelos colegas no ambiente carcerário. “Pressões” é o nome estabelecido para este tipo de maltrato sexualizado que ocorre na cadeia. Se “pressões” poderia ser um eufemismo, pode também ser uma indicação de uma coação para curvar-se e aceitar uma posição afim com a sua natureza na estrutura de relações fortemente marcada por uma concepção dos lugares e atributos de gênero. Não se trataria meramente de um “castigo” como o populariza o folclore das cadeias, mas de algo mais profundo: enunciado, feito público, e constatação da pouca virilidade do estuprador, da sua masculinidade frágil. Um exemplo mais da sociologia profunda que as teorias nativas costumam conter.
“Masculinidade” representa aqui uma identidade dependente de um status que envolve, sintetiza e confunde poder sexual, poder social e poder de morte. “Os homens” – diz Ken Plummer numa interessante análise das relações entre masculinidade, poder e estupro – “se definem a si mesmos a partir da sua cultura como necessitados de estar em controle – processo que começam a apreender na primeira infância. Se este núcleo de controle é retirado ou colocado em dúvida, então uma reação a esta vulnerabilidade pode ocorrer. […] Esta crise no papel masculino pode ser a dinâmica central que requer análise para aceder às várias facetas do estupro. […] aqueles nos grupos sociais mais baixos parecem ser especialmente vulneráveis. Para as classes operárias e as minorias raciais esta crise se apresenta máxima: no piso da ladeira social, seu senso de masculinidade é absolutamente fundamental” (Plummer 1984: 49). Para este autor, “o problema de estupro passa a ser, em grande medida, o problema da masculinidade, e é este último o que deve ser indagado se se quer ver o problema do estupro, algum dia, resolvido” (Ibidem: 53). É, justamente, compreender o homem que viso neste ensaio, e as teias de sentido em que a masculinidade e o fenômeno do estupro se entrelaçam.
Estupro pode ser, assim, compreendido como forma de restaurar o status masculino prejudicado, pairando aqui a suspeita de uma afronta e o ganho (fácil) num desafio aos outros homens e à mulher que cortou os laços de dependência da ordem do status, todos estes genericamente entendidos. Na verdade, não se trata de que o homem pode estuprar, mas de uma inversão desta hipótese: ele deve estuprar – se não pela via dos fatos, pelo menos de forma alegórica, metafórica ou na fantasia. Este abuso estruturalmente previsto, esta extorsão de ser, ato vampírico perpetrado para ser homem, se refazer homem em detrimento do outro, a expensas da mulher, num horizonte de pares, tem lugar no seio de um duplo-duplo vínculo: o duplo vínculo das mensagens contraditórias da ordem do status e da ordem contratual, e o duplo vínculo inerente na natureza do patriarca, que deve ser autoridade moral e poder ao mesmo tempo.
O status masculino, como o demostram num tempo filogenético os rituais de iniciação dos homens e as formas tradicionais de acesso ao mesmo, deve ser conquistado por meio de provas e superando desafios que, muitas vezes, demandam inclusive encarar a possibilidade da morte. Por ser este status adquirido, conquistado, corre-se permanentemente o risco de perdê-lo e, portanto, deve ser assegurado e restaurado diariamente. Se a linguagem da feminilidade é uma linguagem performativa, dramática, a linguagem da masculinidade é a linguagem violenta da conquista e preservação ativa de um valor. O estupro deve ser compreendido no seio desta diferença e como movimento de restauração de um status sempre prestes a ser perdido, status que, por sua vez, se instaura a expensas e em detrimento de um outro, feminino, de cuja subordinação se torna dependente.
Relata Godelier que, coroando suas pesquisas de mais de três décadas entre os Baruya da Nova Guiné, veio a descobrir o segredo mais surpreendente e bem guardado do grupo: a flauta ritual da casa dos homens, símbolo e segredo da masculinidade, na verdade, é das mulheres mas foi roubada destas pelos homens que, desde então, vêm se beneficiando com a sua utilização (Godelier 1996: 182). A espoliação do feminino – pela força, pelo roubo – é expressa aqui de forma surpreendentemente próxima da máxima lacaniana que afirma que “a mulher é o falo” enquanto “o homem tem o falo” (Lacan 1977: 289). Aponta-se também, desta forma, para o que circula da mulher para o homem como exação, condição sine qua non da masculinidade. Mas se isto faz parte de uma estrutura identificável em universos tão distantes, significa que a “fragilidade” masculina e sua dependência de uma “substância” que suga ou rouba do feminino não é uma condição excepcional, uma “doença” de alguns indivíduos ou dos membros masculinos de algumas camadas sociais, mas parte constitutiva da própria estrutura e da natureza das suas posições.
A imputação de um sentimento de inferioridade e de uma “masculinidade prejudicada” como fundamento que dá sentido ao estupro é bastante recorrente na literatura (ver, entre outros Bromberg 1948 ou West. Roy and Nichols 1978). Como afirmam Heleieth Saffioti e Suely de Almeida: “…o poder […] por ter eficácia relativa e porosa, não pode prescindir da força. Portanto, esta forma de violência denuncia a impotência de quem consegue supremacia nesse jogo, para manter o outro sob domínio absoluto” (1995: 218). Contudo, é importante marcar aqui uma posição que se separa tanto de um modelo explicativo centrado na patologia individual do criminoso (neste caso, a sua fragilidade, a sua emasculação), como também na explicação por um suposto poder que faria parte da natureza do homem. Nem se trata de um problema restrito à esfera do indivíduo, nem ele é a consequência direta e espontânea do exercício do poder do homem sobre a mulher.Diana Scully, numa exaustiva e inteligente análise de um corpus de entrevistas com cento e quatorze estupradores condenados, postula o antagonismo das duas teses:
Em contraste com o modelo psicopatológico, este livro se fundamenta numa perspectiva feminista e no pressuposto de que a violência sexual é sociocultural em origem: os homens aprendem a estuprar. Portanto, em lugar de examinar as histórias de caso de homens sexualmente violentos em busca da evidência de uma patologia (na literatura tradicional, amiúde acusatória das suas mães ou esposas) ou de motivos individuais, utilizei coletivamente os estupradores condenados como expertos capacitados para informar sobre uma cultura sexualmente violenta. (Scully 1994: 162)
A autora descreve de forma convincente as razões que a afastam das explicações psicopatológicas, apontando que estas retiram “a violência sexual do reino do mundo ‘normal’ ou cotidiano e a colocam na categoria de comportamento ‘especial’ ”, eliminando “qualquer conexão ou ameaça aos homens ‘normais’ ” . Desta forma, a abordagem “nunca vai além do ofensor individual”, “uns poucos homens ‘doentes’ […] Assim, o modelo psicopatológico, ou médico- legal, do estupro prescinde da necessidade de indagar ou mudar os elementos numa sociedade que podem precipitar a violência sexual contra as mulheres” (Ibidem: 46). Do outro lado, a tese feminista “vê o estupro como uma extensão da conduta normativa masculina, o resultado da conformidade com os valores e prerrogativas que definem o papel masculino nas sociedades patriarcais” (Ibidem: 49).
O discurso dos estupradores entrevistados parece-me indicar uma terceira posição, apontando para o que poderia ser descrito como uma “injunção” de estupro. Esta injunção, colocada pela sociedade, vigora no horizonte mental do homem sexualmente agressivo pela presença de interlocutores em sombra aos quais o criminoso dirige seu ato e em quem este ato adquire seu sentido pleno. Esta injunção expressa o mandato social de que ele deve ser capaz de obter a constatação da sua virilidade, enquanto composto indiscriminável de masculinidade e subjetividade, pela exação da dádiva do feminino. Na impossibilidade de extrair essa dádiva por meio de procedimentos amparados pela lei, ele é coagido por essas presenças a extorqui-la por meios violentos. A rendição da dádiva do feminino é a condição que faz possível a emergência do masculino e seu reconhecimento como sujeito assim posicionado. Em outras palavras: o sujeito não estupra porque tem poder ou para provar que o tem, mas porque deve obtê-lo.
A dimensão simbólica do estupro
Parece-me, de fato, possível afirmar que o estupro faz parte de uma estrutura de subordinação que é anterior a toda e qualquer cena que o dramatize e lhe dê concretude. Tal como Kaja Silverman (1992) afirma para a estrutura de gênero, o estupro faz parte do horizonte do simbólico, e é somente por isso que cenas não exatamente sexuais podem ser lidas como emanações deste solo simbólico e da sua ordenação. O uso e abuso do corpo do outro sem seu consentimento pode se dar de diferentes formas, não todas igualmente observáveis.
Falaria então, em primeiro lugar, do que poderia ser chamado de “estupro alegórico”, onde não ocorre um contato que possa ser qualificado como sexual mas há intenção de abuso e manipulação indesejada do outro. Imaginemos a cena de um filme na qual um estuprador assola uma vizinhança, aterrorizando as mulheres que ali moram. A narrativa chega ao seu clímax
quando, finalmente, o estuprador consegue invadir a casa da protagonista. Uma vez frente a ela, procede, então, a perpetrar o tão temido ato. Mas esse ato, nessa narrativa particular, consiste em fazer a aterrorizada vítima ajoelhar e, num batismo perverso, procede a despejar água na cabeça da mulher humilhada. Imaginemos que o trauma da humilhação é dramatizado como devastador, mas, aparentemente, nenhum contato propriamente sexual teve lugar. Este é o exemplo paradigmático do que estou chamando de estupro alegórico, onde um ato de manipulação forçada do corpo do outro deslancha um sentimento de terror e humilhação idêntico ao causado por um estupro cruento. Somente a existência de uma estrutura profunda que precede a este ato de poder e sujeição permite-nos fazer essa leitura e, o que é mais importante ainda, permite à vítima experimentar o seu terror.
Existem ainda outras formas de estupro metafórico, consistentes em transformações mais ou menos afastadas do protótipo propriamente sexual, como a prática comum, durante os anos de 1996 e 1997, entre as gangs de ladrões da cidade de México que, após roubar, raspavam a cabeça das mulheres vitimizadas, impondo-lhes o que consensualmente se entendeu como “vexame” ou “humilhação”, pode também ser compreendida desta forma, pois resultava num “castigo a mais” a ser sofrido pelas mulheres – e não pelos homens roubados – somente em razão do seu gênero.
Outro exemplo da experiência de um estupro mais simbolizado do que físico é a definição “inclusiva” do estupro utilizada pelas prostitutas londrinas no contexto do trabalho, pela qual “a violência física o a ameaça de violência é classificada junto com o infringimento do contrato de serviço acordado” (Day op.cit.: 179) por parte do cliente como, por exemplo, retirar a camisinha, não pagar o acordado, dar um cheque sem fundo ou forçar outras práticas não acordadas durante a relação sexual. Todas estas ou outras formas de rompimento do contrato pré-estabelecido entre a prostituta e o cliente são denominadas “estupro” pelas trabalhadoras sexuais.A alegoria por excelência, contudo, parece-me estar constituída pelo male gaze, ou visada masculina, na sua predação simbólica do corpo feminino fragmentado. A visada, em oposição ao olhar, foi teorizada por Lacan e examinado na sua mecânica por Kaja Silverman (1996) de forma esclarecedora. Este tipo de intervenção visual procede ao escrutínio do seu objeto sem que a comutabilidade de posições entre observador e observado fique implicada, e é nesta característica que ela se diferencia do olhar – olhares se trocam, enquanto a visada é imperativa, sobrevoa a cena e captura sua presa. É a câmera fotográfica que incorpora este tipo de intervenção visual no mundo: “quando sentimos a visada da sociedade focalizada sobre nós, sentimo-nos fotograficamente ‘enquadrados’ […] quando uma câmera real se volta sobre nós, sentimo-nos constituídos subjetivamente, como se a fotografia resultante pudesse de alguma forma determinar ‘quem’ somos” (Silverman 1996: 135). A visada, como o estupro, captura e enclausura o seu alvo, forçando-o a um lugar que se torna destino, um lugar que não tem escapatória, uma subjetividade obrigatória. Lembro-me do comentário de Frantz Fanon, no seu Pele Negra, Máscaras Brancas, sobre a alegoria do Senhor e do Escravo em Hegel: na versão colonial desta dialética, diz Fanon, o senhor imperial nega ao colonizado a sua necessidade, recalca a relação. O gaze é este olhar abusivo, rapinador, que se encontra fora do desejo e, por sobre tudo, fora do alcance do desejo do outro. Como tal, constitui a forma mais despojada de estupro.
Poderíamos perguntar-nos porque estas formas alegóricas e metafóricas do estupro são possíveis e resultam em atos de sentido e valor equivalente, e onde radica precisamente sua equivalência. Interpretando uma série de representações pictóricas do estupro de Lucrécia, Mieke Bal, na obra já citada, afirma que o “estupro não pode ser visualizado porque a experiência é, tanto na sua dimensão física como na psicológica, interna. O estupro ocorre dentro. Neste sentido, o estupro é por definição imaginado, pode existir somente como experiência e como memória, como imagem traduzida em signos, nunca adequadamente objetificável” (op.cit.: 68). Sendo assim, uma série de condutas expressando transposições de uma relação simbólica de abuso e extorsão unilateral podem ser entendidas como equivalentes e deslanchar um mesmo tipo de experiência.
Por outro lado, seria possível afirmar que o estupro, ainda quando inclui sem lugar a dúvidas a conjunção carnal, nunca é de fato um ato consumado, mas a encenação de uma consumação, inevitavelmente presa na esfera da fantasia. Em outras palavras, se, para a vítima, ele somente se consuma como violação na sua interioridade; para o estuprador, ele é a irrupção de uma fantasia. Isso torna inteligível, nas emoções que deslancha, a proximidade entre suas formas alegóricas e violentas. Ele é sempre uma metáfora, sempre uma representação de uma cena anterior, já acontecida, à qual se tenta, sem sucesso, retornar. O estupro é uma tentativa de retorno nunca consumada. Fantasia de consumação que, na verdade, perece numa consumissão. Consumissão que encena a saciedade mas não a alcança. Daí a sua caraterística serialidade, seu usual ciclo de repetições. E daí também sua associação preferencial com sociedades de maior inclinação consumista como, tipicamente, os Estados Unidos da América do Norte, onde a encenação fugaz, recorrente e serial da saciedade é mais característica.
A racionalidade do estupro
Da fala dos estupradores condenados emerge, de forma recorrente, a opacidade do ato para a própria consciência de quem o perpetrou. Assim, quando comparamos o estupro com outros crimes constatamos que ele carece dessa dimensão instrumental própria deles. O roubo é motivado pelo desejo de apropriar-se dos bens da vítima. O homicídio, por sua vez, pode ser motivado pelo desejo de vingança, por medo e para defender-se de uma possível acusação ou delação, ou por encomenda em troca de um pagamento. Alguns depoimentos fazem referência à oportunidade providenciada por um roubo bem sucedido para então apoderar-se de algo a mais e deixam perceber o estupro como roubo ou como parte de um roubo. Este tipo estaria, portanto, numa primeira aproximação, mais próximo de uma instrumentalidade: a apropriação de um serviço sexual pela força. Na verdade, todo estupro é um roubo de algo, somente que esse algo, percebe-se posteriormente, não pode ser roubado, é um bem fugidio, perecível em alto grau. Trata-se, como dissemos, da exação do feminino no ciclo confirmatório da masculinidade. E volta-se, nos depoimentos, à perplexidade pela irracionalidade do ato. Porque, em última instância, o estupro não traz nada para casa. Ele é pura perda, inclusive do ponto de vista do próprio estuprador.
Ele é, poderia se dizer, um ato ininteligível, percebido a posteriori como irracional, isento de sentido. Assemelharia-se, em princípio, ao que Jonathan Fletcher, na sua exegese da obra de Norbert Elias, chama de “violência expressiva”, que constitui um “fim emocionalmente satisfatório em si mesmo”, em oposição à “violência instrumental”, “como meio escolhido racionalmente para alcançar um objetivo determinado” (Fletcher 1997: 52). Isto não é inteiramente assim, porém, porque ele de fato responde dialogicamente à interpelação de personagens que povoam o seu imaginário, figuras genéricas que o compelem e exigem a restaurar uma ordem de prejudicada. Em última instância, a virilidade e o prestígio pessoal que ela confere, como valor, é o que está em jogo. Poder-se-ia dizer, portanto, que se trata de uma violência instrumental que visa um valor, ou seja, a reparação ou aquisição de um prestígio.
Contudo, a sua aparente falta de finalidade racional, gostaria de enfatizar, retorna como perplexidade no discurso dos entrevistados. O desejo ou a intenção que move ao ato de estupro cruento, de rua, carece, aos olhos destes, quase por completo de instrumentalidade. Se este crime, quando perpetrado contra uma pessoa conhecida, pode ser pensado como uma tentativa de satisfazer o desejo sexual referido a uma pessoa particular, no caso do estupro anônimo de rua isto não parece se dar desta forma. No discurso dos estupradores, é recorrente a ideia de que se trata de qualquer corpo e, o que resulta mais surpreendente, muitas vezes de um corpo considerado abominável ou, pelo menos, não particularmente desejável. Isso faz com que a sexualidade providencie a arma ou instrumento para a perpetração da agressão, mas que o investimento não seja propriamente da ordem do sexual. Para ser capazes de dizer mais sobre este aspecto, fundamental porém evanescente, teríamos que adentrarmo-nos na complexa tarefa de indagar as relações entre sexualidade e agressividade e perguntarmo-nos se é de fato possível separar estes campos. Em outras palavras, teríamos que examinar detalhadamente as possibilidades – ou não – de definir a sexualidade como campo perfeitamente isolável da experiência humana. Por enquanto, somente é possível apegar-se, como vim fazendo nesta análise, às percepções dos próprios atores.
Esta ambiguidade de registros, esta superposição dos âmbitos da sexualidade e do poder, tem como consequência a aparência opaca e irracional com que se apresenta a prática do estupro cruento aos olhos dos seus próprios perpetradores. No caso de estupro cruento entre pessoas conhecidas, na verdade, o aspecto irracional acaba também prevalecendo, pois a pergunta ressurge de outra forma: como poderia se agredir ou até eliminar quem fora um instante atrás objeto de desejo? Quero enfatizar que esta questão de difícil solução não constitui um problema perturbador exclusivamente para nós, mas muitas vezes o é para o próprio estuprador.
Contudo, ainda é necessário fazer notar que nenhum crime se exaure na sua finalidade instrumental. Todo crime é maior que seu objetivo: ele é uma forma de fala, é parte de um discurso que teve que se continuar pelas vias de fato; é uma assinatura, um perfil. E é essa a razão pela qual é raro o crime que usa a força estritamente necessária para atingir o seu objetivo. Sempre há um gesto a mais, uma marca a mais, um traço que excede a sua finalidade racional. Portanto, quase todo crime se aproxima do estupro, em alguma medida, nesta natureza excessiva, arbitrária. Contudo, se quem fala nos atos violentos em geral é o sujeito, inclino-me a pensar que, no estupro cruento, é uma estrutura quem fala mais alto e através dele, dissolvendo-o e destruindo-o nesta fala como um joguete perecível da sua lógica inexorável. Tentarei levar esta tese à frente em seguida.
A dimensão psicanalítica do estupro
Se, até aqui, falei de uma racionalidade social do ato, que deve ser achada nos interlocutores em sombra aos quais o discurso do estupro tenta falar, os processos que agora passo a examinar apontam para uma racionalidade que deve ser achada nas tensões intrapsíquicas capazes de dar conta da compulsão e da repetição de um tipo de ato em última instância autodestrutivo, e que não oferece ganho ou saída para seu próprio perpetrador além de um alívio extremamente fugaz ao sofrimento psíquico. Tentarei aqui identificar brevemente, e de modo programático, os processos e mecanismos psicológicos dos quais o estupro faz parte e que falam da intrusão, no universo intrapsíquico do sujeito, do mandato social que pesa sobre o masculino. Contudo, quero fazer notar que não se trata de achar uma causalidade psicológica do estupro identificando psicopatologias específicas. Menachem Amir, na obra já citada, provou de forma exaustiva ser infrutífera a busca por este tipo de causalidade em psicopatologias individuais. O que se trata é de mostrar como o universo social irrompe na dimensão intrapsíquica e, através desta, encaminha as ações individuais.
Listarei brevemente alguns conceitos psicanalíticos que podem servir na identificação de algumas estruturas presentes nas falas dos condenados:
- O conceito de narcisismo é o que mais claramente vincula as exigências do meio social que pesam sobre o estuprador, tal como as descrevi até aqui, e o estado interno em torno do seu crime. Narcissismo masculino, no sentido, elaborado por Kaja Silverman (1992), da encenação, por parte sujeito masculino, de uma não castração, da negação performática da sua falta. Trata-se da montagem de uma cena onde o sujeito executa o papel de não castrado, ou seja de alguém que não é vulnerável à experiência da falta e para quem, portanto, o ato sexual não vem a preencher esse vazio. O sujeito encontra-se tão absorto não execução desse papel vital para a sua auto-imagem que a vítima entra em cena como mero suporte deste seu papel. É por isto que nem o desejo nem o sofrimento da vítima encontram registro na consciência do estuprador no
- decorrer do lapso temporal em que este se encontra sob os efeitos da cena narcísica, cativo do seu roteiro.
- Uma das tramas mais frequentes que podem ser pinçadas nas falas dos estupradores desenha um tipo particular de self-fulfilling profecy. A culpa, em alguns estupradores, parece preceder o ato, é parte de um aspecto constitutivo da sua pessoa. O ato do estupro somente parece vir a confirmar essa qualidade moral que o precede. O ato que espera, ou mesmo que busca um castigo parece ser ditado por uma auto-abominação preexistente. Ouve-se, por trás de alguns depoimentos, uma inversão curiosa: “o estuprador é antissocial, por isso estupra”, ao invés de “o estuprador estupra, por isso é antissocial”. Neste sentido, vários depoimentos lembram a culpa prévia e a busca de punição por uma masculinidade sob suspeita que Freud lera na personalidade de Dostoievski.
Com efeito, no seu “Dostoievski e o Parricídio”, Freud interpreta desta forma a escolha dos seus personagens – violentas, homicidas e egoístas – assim como sua adição ao jogo e sua possível confissão de um ataque sexual a uma garotinha: um pai punitivo e cruel (que pode no nosso caso ser substituído por uma ordem punitiva e cruel), que o inocula com a dúvida sobre o seu próprio valor e virilidade, a vida sob ameaça, instalam uma culpa que somente repousa brevemente no castigo. Nos seus crimes, ficcionais ou reais, sugere Freud: “Em vez de se punir a se mesmo, conseguiu fazer-se punir pelo representante paterno. Temos aqui um vislumbre da justificação psicológica das punições infligidas pela sociedade. É fato que grandes grupos de criminosos desejam ser punidos. O superego deles exige isso; assim se poupam a si mesmos a necessidade de se infligirem o castigo” (Freud 1980: 215). Na escuta dos depoimentos, tenho percebido este elemento: a busca de punição jogando um papel fundamental na prática do estupro cruento. Há um ódio prévio, que procura seu reconhecimento e seu castigo. O reconhecimento deste superego autoritário e punitivo, que atinge outros para alcançar a própria destruição do ego, se ajusta perfeitamente bem à ideia de que o estuprador se apega a um standard de moral extremamente (eu diria, patologicamente) rigoroso, como já anotamos.
- Muitas falas de estupradores revelam um claro impulso autodestrutivo em associação com o estupro, uma espécie de suicídio consumado no corpo do outro. O estupro emerge como
- agressão auto-referida através do outro, uma agressão que retorna ao sujeito e o deteriora e devasta. O conceito de passage à l’acte parece-me um instrumento útil para descrever um processo que acredito se encontrar referido na fala dos estupradores. Se a noção de acting out, formulada por Lacan em estreita relação com aquela outra no seu Seminário X sobre a angústia, poderia ser definida como uma ação ostensiva, demonstrativa de uma intenção de significar, onde o sujeito ainda fala mas fala por meio de um ato, o passage à l’acte aponta para a irrupção da estrutura do simbólico através e às custas do sujeito. Ao agir, nesta explosão dramática que é a passagem para o ato, o sujeito “abandona a cena, não havendo já elemento de mostração para um outro” (Gaugain 1987: 131). No caso do estupro como passagem para o ato, na e pela destruição da subjetividade da vítima, fica abolida, de um golpe só, a subjetividade do próprio estuprador, por ser esta construída em estreita dependência daquela, caindo assim por terra na mesma hora do seu afloramento a própria ordem regida por esta gramática.
Outra forma de falar disto seria a seguinte: num gesto desesperado por responder a um pai – ou uma ordem – abusiva, o sujeito masculino se coloca no seu lugar e, incorporando-o – ou incorporando a ordem –, encena o abuso sobre um outro feminino. Com a destruição da sua vítima enquanto sujeito, seu próprio poder de morte fica subitamente sem suporte. Abolido o poder com a eliminação da sua razão de ser – a vítima na sua subjetividade –, abole-se o sujeito que nele se apoia e que dele obtém sua identidade. Instantaneamente, o próprio abuso que tinha desencadeado o processo destrói-se com a destruição do sujeito, trazendo-lhe um alívio fugaz. Invertendo a leitura pode-se portanto dizer que o sujeito se auto-elimina no estupro para destruir o abuso sofrido e, com ele, o pai – ou a ordem – cuja imagem, por sua vez, naquele abuso se apoiava. A implosão do próprio poder com a morte – imaginária ou real – da sua razão de ser – a vítima – equivale, por um instante, à implosão da estrutura simbólica, trazendo um breve repouso ao sujeito masculino/violento preso a ela. A compulsão de repetição se deve a que a estrutura aflora, atravessando o sujeito, para ser desativada somente por um instante com a própria neutralização do sujeito violento na eliminação da sua vítima. A passagem para o ato é esta: a destruição do sujeito no seu ato pela sua transmutação em puro vazio. O vazio do abolido, onde não há mais diferença entre vítima e agressor. O vazio da falta, do “objeto a”.
- Finalmente, o estupro apresenta-se às vezes como um gesto de posse violenta da figura materna
- negada – uma mãe genérica da qual não se necessita nem se pretende consentimento. Um ato só de reconquista e punição, onde o aspecto punitivo é o dominante em função da pretensão de que não há falta e em concordância com o protagonismo de um sujeito que se constrói como não castrado e que monta, para isso, a cena do estupro.
Uma palavra sobre prevenção
Toda fala sobre prevenção deve partir da seguinte pergunta: se o abuso e a exação do feminino é, como dissemos, parte constitutiva da estrutura de gênero, se a fantasia difusa do abuso do outro é omnipresente, perpassando o imaginário social e estruturando as relações sociais, em que momento e através de que processo a apropriação do outro que alimenta a identidade masculina sai do seu confinamento na imaginação coletiva e se instala nas relações concretas entre as pessoas sob a forma de ato violento? Em que circunstâncias a barreira que contém a fantasia cai e o ato cruento se deslancha? Porque e quando se abre a caixa preta da fantasia para que o ato violento se instale nas relações interpessoais? Em parte, alguns subsídios para responder a essa pergunta foram já dados ao longo do ensaio. Mas é pertinente aqui destacar a importância desta pergunta para a questão da prevenção.
Ao examiná-la com maior vagar percebemos que, em certo sentido, prevenir de forma pragmática o estupro cruento poderia significar, um tanto cinicamente, manter o regime de espoliação que é a condição de possibilidade e manutenção da identidade masculina (e, aliás, de toda identidade radicada no poder) na esfera das relações imaginárias, no sentido de preservar no campo da fantasia a realização deste regime simbólico e das relações a que dá lugar, porém colocando limites precisos a sua expressão.
De fato, se o lugar da extorsão de ser é inamovível de uma estrutura social hierárquica e habita o imaginário coletivo, introduz-se aqui a tão debatida questão: são as representações de fantasias de violência e abuso propícias ao desencadeamento da violência física ou, pelo contrário, contribuem para a prevenção da mesma? Seria possível sugerir o mergulho na fantasia para suspender o ato? Qual é, então, o papel da fantasia na sociedade?Somente posso deixar aqui esta questão em aberto e avançar uns poucos subsídios que estimulam a indagação. Walter Benjamin, em A Obra de Arte na era de sua Reprodutibilidade Técnica, já dizia, ao falar sobre o “inconsciente ótico”: “essa mesma tecnização abriu a possibilidade de uma imunização contra tais psicoses de massa através de certos filmes, capazes de impedir, pelo desenvolvimento artificial de fantasias sadomasoquistas, seu amadurecimento natural e perigoso […] A enorme quantidade de episódios grotescos atualmente consumidos no cinema constituem um índice impressionante dos perigos que ameaçam a humanidade, resultantes das repressões que a civilização traz consigo […] os filmes grotescos produzem uma explosão terapêutica do inconsciente” (Benjamin 1987: 190). Benjamin parece sugerir aqui que o papel da representação da fantasia e sua reprodução e difusão por meios técnicos seria o de servir de espelho para que a sociedade pudesse reconhecer-se nas suas tendências e nos seus perigos. O cinema ou outros meios massivos seriam produtos da transferência das imagens do inconsciente social sobre um suporte projetivo onde adquiririam visibilidade. Mas, cabe ainda perguntar-se quando esta visibilidade funciona como re-flexão, permitindo o re-conhecimento e, com isso, o autoconhecimento, e quando procede-se a uma identificação cega, onde o sujeito é capturado pela imagem e a fantasia toma conta deixando o mundo sem lado de fora? Onde fica esse limite, quais são as garantias necessárias para que este sequestro não aconteça?Judith Butler faz uma análise semelhante ao comparar corajosamente a lei Helms, que impede que fundos estatais financiem artistas como Robert Mapplethorpe em função das contravenções à moralidade estabelecida que seus trabalhos contém, com a lei MacKinnon/Dworkin, resultante das lutas feministas contra a pornografia. Butler, para analisar os perigos de uma sub-reptícia convergência entre a Nova Direita e o feminismo num moralismo reacionário, discrimina de forma deslumbrante o papel ambíguo da fantasia na vida social:
A Fantasia posa como realidade, estabelece a realidade por meio da impostura repetida e persistente, mas também contém a possibilidade de suspender e interrogar sua própria pretensão ontológica, de rever sus próprias produções, por assim dizer, e de contestar sua pretensão de constituir a realidade. (Butler 1990: 108)
Ao longo de uma démarche analítica que avança a passo férreo, Butler vai deixando claro que a ação física constitui justamente a forclusão da fantasia e não sua consequência, como inicialmente pensaríamos: “se confunde a construção fantasmática do real com um vínculo temporal entre fantasia e realidade, como se a fantasia pudesse de repente transmutar-se em ação, como se ambas fossem em princípio separáveis. Contudo, eu diria que a fantasia é uma ação psíquica, e o que se invoca como ‘ação física’ naquela formulação causal é precisamente a condensação e a forclusão da fantasia. […] o ponto de vista de que a fantasia motiva a ação elimina a possibilidade de que a fantasia seja a cena mesma que suspende a ação e que, em sua suspensão, propicia a indagação crítica do que constitui a ação” (Ibidem: 113) . Continuando seu percurso de análise, Butler conclui que “as proibições invariavelmente produzem e fazem proliferar as representações que procuram controlar, portanto, a tarefa política é promover a proliferação das representações, os espaços de produção de discursos que possam então contestar a produção autorizadora resultante da proibição legal” (Ibidem: 119). Para a autora, a proibição produz pornografia, já que a reconhece mas impede a circulação de discursos e formas de representação que permitiriam a sua superação reflexiva. Da mesma forma, a verdadeira causa da violência seria então aquela que impede e obstaculiza a passagem dos discursos e imagens que fazem possível uma reflexão sobre a mesma.
Parece-me que o fundamental é perceber que o tempo de reflexão e a abundância dos recursos discursivos que lhe servem são inversamente proporcionais ao tempo e aos meios da violência. Numa sociedade onde o tempo da reflexão e os meios discursivos que a fazem possível decrescem cada dia, a violência aumenta em ritmo proporcional. Na sociedade moderna, o problema da prevenção do estupro é o problema do autoconhecimento: colocar a disposição das pessoas um vocabulário que permita um caminho de interiorização, expor e manter acessíveis ao olhar e à compreensão as estruturas que conduzem o nosso desejo e nos fazem agir é, acredito, abrir e preservar em bom estado as vias de acesso ao bem. Nada menos radical do que isso é capaz de uma prevenção eficaz em termos duradouros.
Sobre a autora
Rita Segato é antropóloga argentina e professora emérita da Universidade de Brasília (UnB) – onde lecionou entre 1985 e 2010 –, titular da Cátedra Unesco de Antropologia e Bioética e coordenadora da Cátedra Aníbal Quijano do Museu Reina Sofia, Espanha, entre outros títulos e cargos.
Notas
- Originalmente publicado in Suárez, Mireya e Bandeira, Lourdes (orgs), Violência, Gênero e Crime no Distrito Federal. Brasília: Paralelo 15 e Editora UnB, 1999.
- No Brasil, o código penal definia o estupro, até 2009, como um crime de ação privada e o enquadrava no artigo 213 (Lei No. 8.069/90; Lei No. 8.072/90; Lei 8.930/94), considerado-o – muito significativamente, como mostrarei – um crime contra os costumes e não contra a pessoa. Ele era restrito ao sexo vaginal entre um homem e uma mulher, contra a vontade dela, feito possível pelo uso de violência ou grave ameaça. Só havia estupro, portanto, nesta legislação, quando houvesse penetração do pênis na vagina. De acordo com a Guia dos Direitos da Mulher (1994: 92): “A violência pode ser: física – quando o estuprador usa de força física para dominar e submeter a mulher à relação sexual; psicológica – quando o estuprador provoca medo ou pânico na vítima e ela fica inerte, sem condições de reagir; [ou] com ameaça – quando o estuprador ameaça causar algum mal à mulher ou a outra pessoa de seu interesse”. Atos libidinosos diferentes da conjunção carnal, como obrigar, mediante violência ou grave ameaça, a praticar sexo anal ou oral, ou impor, mediante coação ou constrangimento, a realização de outras formas de contato de natureza sexual a quem não quer ou não gosta entravam na categoria de Atentado Violento ao Pudor, enquadrado pelo código penal como crime de ação pública no artigo 214 (Lei No. 8.069/90, art. 263; Lei No. 8.072/90, art. 6; Lei No. 8.930/94).
- Ver, por exemplo, em Schifter 1999, um extraordinário e revelador análises, respaldado relato de abundantes casos rigorosamente documentados, da vida sexual dos sujeitos encarcerados em cárceres da Costa Rica.
- Um grupo de estudantes de antropologia sob minhas coordenação leu os prontuários dos 82 internos que se encontravam confinados, em abril de 1994 , no Presídio da Papuda, Complexo Penitenciário do Distrito Federal, Brasil , por crimes apenados nos artigos 213 e 214 do Código Penal, ou seja, por “Crimes contra a Liberdade Sexual”, embora às vezes combinando estes crimes com outros como lesão corporal ou crimes contra a propriedade (ver Almeida, França et alii, 1995) . Numa segunda etapa, entre os meses de agosto de 1994 e abril de 1995 procedeu-se a realizar as extensas entrevistas, que se concentraram em dezesseis internos e resultaram em aproximadamente cinco horas de gravação cada uma, realizadas confortavelmente ao longo de várias sessões semanais. Os diálogos com os internos foram cara a cara, em sala privada, sem algemas, sem grades ou vidros separando entrevistador e entrevistado e sem agentes carcerários dentro do recinto. As entrevistas foram abertas, tendo como seu principal objetivo permitir ao sujeito refletir e elaborar sobre as circunstâncias dos crimes cometidos, assim como rememorar a paisagem mental daquele instante e os fatos biográficos que achasse relacionados. Esta primeira análise desses materiais que aqui publico pode ser considerada ainda programática, pois não utilizo exaustivamente as entrevistas gravadas mas tento um primeiro esboço dos temas centrais que nelas surgiram à luz de uma perspectiva histórica e cultural abrangente.
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