Contracultura, contrapoder ou como fazer uma revolução? O que é a revolução feminista?

Não sei se neste momento das lutas seja necessário repetir: é evidente que os feminismos são uma proposta de revolução, uma mudança estrutural da ordem estabelecida, e não a incorporação das mulheres nas mesmas estruturas patriarcais para reforçá-las. Como Paul Preciado afirma em seu chamado à revolução pós-COVID: a revolução é o que já começou, é o que está acontecendo, é o fio invisível da história que está juntando vozes díspares de diferentes latitudes para catalisar uma gigantesca mudança estrutural e planetária.[1]

 

Quando Las Tesis lançaram uma voz corporal numa praça em Valparaíso contra o patriarcado, acusando-o de estuprador e atrevendo-se, no Chile de Sebastián Piñera, a parafrasear o hino policial,  responderam como um retumbante eco as vozes de milhares e milhares de mulheres que os traduziram em seus próprios idiomas para preencher com o mesmo canto praças, estádios e até parlamentos ao redor do mundo[2]. Com Las Tesis nos convertemos em uma multidão planetária unida por uma consciência coletiva complexa, não identitária e impossível de classificar. Uma consciência coletiva de alianças insólitas de indígenas, putas e lésbicas juntas, revoltas e irmanadas.

 

A revolução feminista, sem exército libertário, sem comandante ilustre, sem heróis de guerra, sem vítimas nem algozes, sem armas e sobretudo sem inimigos para matar ou Estados para conquistar, é uma revolução das estruturas que está desestabilizando tudo. A revolução despatriarcalizante está devorando as instituições patriarcais não para feminizá-las ou dar-lhes uma “perspectiva de gênero”, como cantam absurdamente as ONGs, mas para desestruturá-las e desconstruí-las.

 

O grito verde “Que seja lei” também é um slogan sem fronteiras de algo que já é uma realidade, não porque foi promulgado no parlamento argentino, mas porque se tornou uma voz sem dono que tem a magnitude de uma consciência coletiva e transforma os sentidos da maternidade e do corpo para uma, duas ou três gerações inteiras, para além dos limites impostos pelas fronteiras e para além dos contornos etários que as ideologias tradicionalmente marcaram. Hoje a revolução feminista não está somente nas mãos de pessoas adultas, mas também das jovens e meninas, são elas que terão que se encarregar de inventar esse novo lugar de desobediência.

 

HORIZONTES DE SENTIDO: NÃO TEMOS LINHA, SOMOS PURAS CURVAS

O lenço verde argentino ou a performance de Las Tesis são dois dos exemplos mais midiáticos; no entanto, a soma das infinitas formas de desobediência coletiva praticadas pelos feminismos ao redor do mundo, as inúmeras práticas políticas que inventamos todos os dias, se acumulam de forma intangível e subterrânea e constroem o que chamo de “horizontes de sentido”.

 

A revolução feminista abriu a mais profunda das disputas, aquela que passa pelos sentidos. A disputa pelo direito de nomear e significar. Estamos disputando todos os sentidos: família, bem-estar, comunidade, saúde, justiça, educação, prazer, etc. Essa disputa está abrindo janelas no céu e formulando novos sentidos. Sua produção tem o ritmo que os panfletos em estêncil já tiveram, onde não podíamos parar porque as lutas sociais devoravam panfletos e mais panfletos para derrotar ditaduras, pedir anistias, denunciar desaparecimentos.

 

A febre dos sentidos não para de inventar novas cenas e nem sequer a pandemia a paralisou. É um ritmo contínuo, como quando tricotamos ou bordamos. Cada ponto vai dando uma forma que ainda não conhecemos, mas tecer e tecer é saber que isso está para além de um suéter ou um vestido, tecer e tecer é saber que isso não tem forma conhecida, a única coisa que intuímos é que o ponto final é o que menos interessa.

 

A consciência de que tudo o que nos oprime repousa sobre nossos ombros está generalizada. Basta trocar algumas palavras na porta de uma escola entre mães ou distrair de suas tarefas qualquer trabalhadora de uma farmácia, hospital ou mercado; basta conversar brevemente com uma profissional do sexo para que ela nos diga com lucidez e precisão. Estamos prontas para nos mudarmos do lugar que ocupamos, sabemos que se o fizermos, a estrutura que sustentamos cairá, e não nos perguntamos como, mas para onde vamos nos mover.

 

CONTRACULTURA, ARTE E IMAGINÁRIO SOCIAL

Portanto, não estou falando da contracultura somente em seu conhecido papel como meio de resistência, nem da revolução feminista como uma revolução cultural não estrutural. Não estou falando da arte como um instrumento de mudança onde supomos que é “a arte” que produz a mudança. Estou falando sobre cultura e arte como ferramentas que, quando se colocam no interstício social entre a respiração coletiva e a história, produzem e colecionam versos como os de Vivir Quintana: “Se tocarem em uma, todas respondemos”, cantado hoje como se canta uma “Internacional” socialista, isto é, uma internacional feminista. Versos como aquele que diz: “Eles semearam medo em nós, nós criamos asas” saltam da boca da compositora para a das meninas que transformam essas palavras em força política mobilizada.

 

A arte e a cultura feministas não são necessariamente o que os museus estão timidamente, e maldosamente, mostrando-nos como tal. A arte e a cultura que estão crescendo nesse interstício entre alento e história são aquelas que já não cabem num museu, num lugar concreto, porque formulam um novo imaginário social, porque transformam o imaginário social em grande escala, e aqui mais uma vez refiro-me ao trabalho de Vivir Quintana sobre o medo, porque é mediático e todos aqueles que me lêem conseguem localizá-lo, mas os exemplos são centenas de milhares.

 

As práticas criativas transformadoras que estão moldando novos sentidos estão acontecendo ao ritmo dos batimentos cardíacos. Com todas as gráficas feministas pudemos construir uma ponte de folhas de papel desenhadas que vai de continente em continente como os conquistadores uma vez mediram as quantidades de ouro e prata extraídas das nossas sociedades.

 

A experiência de Mujeres Creando na Bolívia – através dos graffiti que são apenas uma das nossas práticas políticas sustentadas há mais de 25 anos em quatro cidades do país e vai concatenando um texto feminista gratuito de rua – tornou-se um espelho que modifica a auto-imagem das mulheres para elas mesmas e o lugar que elas ocupam. Frases produzidas para uma marcha em defesa da selva, tais como “Nem a terra nem as mulheres somos território de conquista”, saltaram dessa marcha para movimentos de mulheres indígenas em todo o continente e fazem parte da formulação política de si mesmas, de umas e outras em diferentes conjunturas.

 

A relação entre frase e consciência, entre ressonância colectiva e sentido, é complexa, mágica e múltipla. Uma frase solta fotografada e publicada é apenas o registro de um vestígio histórico que representa uma nova forma de compreender o território a partir dos corpos das mulheres. O lugar onde estamos inscrevendo o sentido não é o dicionário da Real Academia Espanhola da língua, mas o imaginário social coletivo.

 

NÃO ESTAMOS EM PAZ, MAS TAMPOUCO ESTAMOS EM GUERRA

Os feminismos estão abrindo um enorme conflito com estados, aparelhos de justiça, polícia, sistemas de educação, sistemas de saúde. É um conflito que nos coloca como um movimento insaciável e sedento, não um movimento que procura ser fechado ou resolvido. É um conflito que produz mais arestas e novos horizontes a cada dia. A insatisfação instalada não tem limites, a náusea social coletiva nos faz vomitar o patriarcado todos os dias; a indisposição política, a raiva, são os estados de ânimo coletivos que estamos experimentando.

 

Nem o voto, nem a abolição da escravidão, nem a legalização do aborto, nem Merkel como presidente, nem Kamala Harris como vice-presidente, nem leis de identidade de gênero, nem leis contra a violência, nem leis sobre participação política resolvem, diminuem ou entorpecem o conflito. As indústrias tentam comer nosso conteúdo e contratam rappers, fotógrafas ou artistas para ajustar suas marcas e nos transformar em consumidoras mansas, mas isso não acontece. Os feminismos continuam a transbordar e a instalar problemas. Nossos corpos com suas estrias, com sua magreza e gordura, com suas enfermidades e nuances, com suas cores de pele, se convertem repetidamente em território indomável.

 

As tarefas que temos pela frente são muitas. É impossível saber o que é mais importante, o que é mais transcendente, tudo se desdobra como uma grande toalha de mesa. Estamos diante de uma revolução contínua e não-finalista, onde as palavras, as cores, as formas e os movimentos que escolhemos se tornam a principal ferramenta para alimentar esta consciência e esta capacidade de inventar o que queremos e de dizer o que não queremos.

 

Não somos um movimento contra-cultural, embora sejamos. O que produzimos poderia ser compreendido sob o rótulo de uma contracultura, mas são – antes – as estruturas que estamos desestabilizando. É a domesticação de nossos desejos que estamos subvertendo. Não há produto contracultura feminista que possa ser comprado, embalado e vendido como um produto que fecha e aniquila o que estamos construindo.

 

É a Disney que tem que mudar seus parâmetros para tentar alcançar a rebeldia com a qual nossos filhos estão crescendo, é a indústria da moda que precisa procurar modelos trans para corresponder ao que estamos imaginando e fazendo, e não o contrário.

 

A revolução feminista parece ter um dom para encontrar o ponto em que a ordem se transforma em caos.

 

A FESTA E O DESEJO

A discussão sobre a inutilidade de nosso trabalho reaparece continuamente a respeito de nossa prática de graffiti. “Suja a cidade”, “não serve para nada”, “o que mudaram ao escrever na cidade?”, “vão logo para a cozinha”, “pelo menos ajudem as mulheres”, “superem sua adolescência”, “sejam úteis para a sociedade”. Estas são palavras que ouvimos o tempo todo, guarnecidas de insultos.

 

A irritação que os graffiti despertam é diretamente proporcional à ruptura que provocam, ao rompimento que anunciam, ao grito escrito que representam.

 

Os jornalistas vêm me perguntar o que conseguimos em 25 anos de luta: onde está a lei escrita, qual é o cargo que ocupamos, qual é a placa de bronze que colocamos na instituição, qual é o prêmio que temos em nossas mãos, quantos seguidores temos?

 

Eu rio e respondo: “Nós não conseguimos nada. Nós somos o fracasso. A única coisa que construímos é um espaço de celebração e desejo sem significado histórico”. Os jornalistas olham para mim entre o prazer e a desconfiança, não têm certeza se estou zombando deles ou não, em qualquer caso eles registram o que acreditam ser a confissão de uma derrota resignada.

 

E eles perguntam: O que você propõe? E a resposta é: Propomos uma revolução. Então o olhar do jornalista muda, ele fica tenso e pergunta novamente: Em que consiste esta revolução, o que você quer mudar?

 

A resposta é: Tudo, queremos mudar tudo. E por onde começar?, o jornalista pergunta novamente.

 

A revolução já começou e você ainda não se deu conta porque não foi notícia, mas eu vou explicar, camarada: a revolução que estamos fazendo começa com a festa e o desejo. O jornalista deixa de tomar notas, interrompe a entrevista. Nada do que lhe estamos dizendo é digno de ser escrito em seu jornal, pois em seu registro linguístico a palavra revolução desapareceu há muito tempo, a palavra desejo não existe e nunca existiu, nem mesmo para apagá-la. E a entrevista tem o título: “Mujeres Creando confessa seu fracasso, eles dizem que nunca se candidatarão às eleições, que não se filiarão a um partido político, que não ocuparão nenhum cargo.”

 

Minha conclusão é: a revolução feminista é ininteligível para o patriarcado porque não é uma luta de forças nem uma imposição violenta. Como exigia Audre Lorde, não estamos desmontando a casa do mestre com as ferramentas do mestre.

 

Tradução: Cristina Ribas e Anderson Santos.

[1] Paul B. Preciado, “Estábamos al borde de una revolución feminista y luego llegó el virus”, El Independiente. Disponible en https://bit.ly/3aGW4ja

[2] Performance colectivo Las Tesis “Un violador en tu camino”, Colectivo Registro Callejero. Disponible en https://www.youtube.com/watch?v=aB7r6hdo3W4

Sumário