memórias póstumas de ex-integrantes da Coletiva
O que é acobertar-se?
Colocar-se sob a coberta
Esticá-la no chão
Junto aos pés
dispostas
a interromper
em presença
ou que é presença?
É relação
múltipla e única
nos limites da borda
Meu cuidado
seu cuidado
é presença bordada
sem margens pré-definidas
Trata-se de não ter medo da loucura, de ficar juntas, de confiar nas palavras, de escutar ou delírio, de aceitar a raiva, de cuidar ainda que da esquina, à distância da virtualidade, de compartilhar a angústia que ela provoca em nós, de compartilhar o cuidado, de cuidar da que cuida, de deixar espaço, de manter a calma, de falarmos entre nós e que as ideias se movimentem, de não se fechar, de interpretar coletivamente, de as que estão longe lembrarem de você, de visitar, magicamente, quando mais é preciso, de que te recebam com um prato, de chorar de felicidade quando tudo acaba, de recobrar energia, de aprender, de continuar juntas e não perder a esperança.
Acobertar
Entendo que dar cobertura, acobertar-se é uma prática em relação, que ganha força em espaços de vínculos não-familiares e não necessariamente entre amigxs estreitxs, ou seja, é como que acompanhar alguém quando moralmente não somos convocadas e nem obrigadas a acompanhar. Daí podem ou não germinar laços mais íntimos e amizades duradouras. O fato de acobertar acontece numa relação em que o pessoal é político.
Acobertar-se é algo como uma atualização do apoio mútuo, com suas variações locais onde é aplicado e praticado. Do mútuo também é preciso dizer algumas coisas, pois se apresenta como uma assimetria quando se trata dar cobertura em situações em que uma das pessoas se encontra atravessando uma crise vital, psíquica e emocional que a impossibilita de acobertar em reciprocidade. Por isso o apoio mútuo não é a mesma coisa que acobertar, que pode não ser mútuo, mas em ambos os casos há uma expansão vital que ocorre na troca. Embora a gente não espere nada em troca, a intensidade e a intimidade revelada traz uma espessura onde o recíproco pode ficar deslocado.
Essa assimetria não significa que devamos nos comparar: quem é mais louca, quem a mais precarizada, quem a mais assistida…isso seria cair nas redes neoliberais de cálculo.
A partir da vivência coletiva, o fato de dar cobertura em situações de crise, em momentos de ansiedades, prisões, decisões vitais, desmedicalizações, resistência às internações, é produzido ao ficarmos perceptivas a respeito do que está acontecendo, mas também da possibilidade de pedir ajuda, que é também o que faz possível acobertar. No entanto, a disposição ou não para pedir ajuda surge espontaneamente. Por isso a resposta que acoberta se movimenta de modo não convencional, organizada afetivamente para suavizar a intensidade da crise.
Contarei algumas práticas a respeito desse dar cobertura, isto é, da experiência de acobertar, que nós aprendemos a fazer. O que me motiva para tal é compartilhar o que resultou mais do que o que não deu certo, com as ferramentas que tínhamos, cada uma se colocando à disposição do momento presente, o que implica sair um pouco de nós mesmas, e que fornece também a possibilidade de estarmos atentas, de aprender a estar atentas à presença.
Dar cobertura envolve pelo menos duas de nós – acobertar uma companheira em crise. Duas, pois a presença que exige quem está atravessando um momento de forte desestabilização e angústia pode ser sustentada com múltiplas velocidades em caso de oscilação. E sobretudo duas para potencializar a presença com gestos e palavras múltiplas. Uma só que acoberte fica difícil, embora sempre seja difícil. É preciso zelar para se cuidar entre as que dão cobertura, para que a companheira em crise se sinta acompanhada com mais presenças. Em duas ou três exprime-se uma dinâmica mais rica de trocas e de ideias para sustentar a situação. Entre elas há também cobertura e sincronias que, por vezes, acontecem e amenizam o momento de atenção, quando se geram afetos que sustentam o acobertar-se mediante afinidades entre algumas de nós.
Cada uma escuta alguma coisa em particular partindo da sua própria experiência e contribui com ferramentas que podem servir de coberta, não como super-heroínas, imprescindíveis, e nem desde um lugar superterapêutico. De todo modo, e embora isso possa de fato ocorrer, tal esforço não visa tentar sanar, curar ou fazer do acobertamento o propósito de um espaço como que de cura e nem de melhora, mas para permear o espaço de sensibilidade, de escuta e atenção para o que está acontecendo.
As simpatias e afinidades facilitam acobertar. Os afetos são sintonias para sermos afetadas na vibração do eu, que acontece na relação múltipla, na presença e no esquecimento do ego, para ficar à dis-posição.
É preciso se conectar com uma presença que ocorre, sem ter vergonha de experimentar a exposição, a fraqueza e também a fortaleza do que sentimos, escutamos e vemos, do que contribui para esse momento. Para passar ao plano do acompanhamento do delírio, onde o temor possa se transformar em vontade de estar aí, presenciando junto com o que cada quem trouxer em sua trajetória. Acontece uma calma da crise, por minutos talvez, e então vamos testando o que é possível, percebendo quando é a nossa hora de acobertar, colocando limites em nosso cuidado.
Portanto, acobertar é presença e acontece entre várias de nós que pululam nos limites do cuidado de uma, de uma outra, da atenção ao momento e da ausência. Dis-postas para o sensível e para a delicadeza como qualidade corporal, tátil inclusive, mais do que da voz. Presença é pôr o corpo, e a imaginação também, com frescor e sem julgamento.
Catlin Ruz.
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Apoio mútuo
Pressupõe-se que a raiz de alguém que está em crise é ativada, ou seja, trata-se de uma emergência que exige se organizar e gerir as coisas rapidamente. Levando em consideração o que falava David Cooper, de que a esquizofrenia não é algo que lhe ocorre a uma pessoa, mas entre pessoas em relação, entendo que não é uma pessoa que está em crise, mas o seu contexto imediato e estendido, o qual deve ser colocado em questão.
Seria ideal ter uma rede respondendo, mas, na prática, isso não é para todes. Nesta sociedade cordatista, que hierarquiza as pessoas, torna algumas desejáveis e outras indesejáveis as quais costumam entrar em crise e, dependendo da natureza da crise, vão ficando sozinhas, ou ficam confinadas em centros psiquiátricos.
Apesar de todo mundo compartilhar informações sobre as subjetividades que precisam de cuidados especiais e de que é preciso inclui-las para fazer uma sociedade melhor, pouca gente de fato aparece quando a situação fica difícil, ou quando o dia a dia se apresenta em condições diferentes, tais como não poder trabalhar, ficar responsável de várias pessoas, sair para locais públicos, não suportar alguns estímulos insignificantes para a maioria e responder de “mau jeito” ao passar por tais situações − como supostamente haveria de se responder?
Além disso, de que modo pode se incluir quem não interage da maneira que o restante das pessoas considera normal, ou quem não consegue assumir a jornada de trabalho/escolar completa? São concedidas facilidades por meio de licenças, mas sempre tentando incomodar o menos possível, pois as instituições, quando toleram, fazem-no apenas até um ponto. Após isso, esperam a caducidade do vínculo, em caso de terem decidido se vincular com alguém de entrada doente.
E não demora então o julgamento moral, estético e da boa higiene para erguer o padrão de saúde mental em massa em vigor, que diagnostica as pessoas e sugere terapia. Que ainda quando pressupõe que não se trata de um dizer explicitamente ofensivo, o individualizante evidencia a pouca vontade de se envolver com o mal-estar e com a loucura, porque assusta, não é mesmo?
E, por outro lado, o desconhecimento que existe sobre quais considerações levar em conta, o que pode ou não ter a ver com a empatia − posso entender necessidades que nunca senti? −, mas, levá-las em consideração é um bom exercício para chacoalharmos a normalidade civilizatória. Então, se a terapia for individualizante e acabar provocando isolamento − e as crise são de contextos, isso tudo somado ao transbordamento do sistema de saúde mental público e aos custos do sistema privado, seria preciso criar noções coletivas não padronizadoras aplicáveis ao dia a dia, que possam ficar à mão de todes, e ao mesmo tempo desnaturalizar nossa resposta aos estímulos diários, ou seja, tornar-nos mais suscetíveis.
Agora vou falar sobre ficar na situação de pedir ajuda, de sentir culpa por nunca poder fazer sozinha, por se sentir e se enxergar insuficiente, por sempre ser tão insuportavelmente frágil. De não ter a desejada autonomia e a vitalidade que toda pessoa normalizada anseia. De sentir que a gente não retribui, porque nunca a gente está bem para ajudar, então não é possível ser recíproca.
Eu sinto cada vez mais que não quero ficar num espaço onde não nos cuidemos, pois se não for para nos cuidarmos ou cuidar de alguém não faz muito sentido ficar. Podemos ir a um parque ou a uma feira com os cuidados e precauções que precisarmos, modificando nossas rotas e os nossos modos de habitar − eis uma maneira de a gente se cuidar. Cuidar-se nem sempre é sinônimo de ficar dentro ou se isolar; isso seria fazer o que o sistema de saúde mental faz: eu prefiro algo orgânico.
…
O que é chamado de acaso, por outro lado, é sincronismo ou confluência. Não de planetas, mas de trânsitos por buscas parecidas, porém sempre diferentes, mas próximas. É o que acaba por fazer com que cheguemos aos mesmos lugares. E poder conviver sob essa linha é o que eu desejaria sempre para mim mesma. Reconhecer a força da intuição, guiar-me atentando para ela e ir achando no caminho pessoas que andem pelas mesmas marginalidades.
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A histeria é coletiva
Abaixo assinado por uma Assembleia Plurinacional Feminista 8M 2020
Não é a mesma coisa ser louca que louco
Demandas das loucas e das mulheres psiquiatrizadas: vamos juntas para a greve!
O modelo capitalista e patriarcal é a causa principal dos mal-estares psíquicos e dos sofrimentos subjetivos que nos afetam. Por isso dizemos:
– Não à psiquiatrização das violências estruturais e patriarcais.
– Não à individualização da violência machista mediante terapias psíquicas como único modo de reparação. Apostamos à rearticulação de redes e à organização entre mulheres como o melhor acompanhamento: as comunidades devem garantir espaços seguros e protegidos para quem é vítima de violência de género.
– Reconhecer a prioridade da justiça e da punição dos responsáveis, rejeitando a coerção das mulheres vítimas para aderirem a “tratamentos psicológicos de reparação”.
– Despatologização do aborto.
– Pelo direito ao aborto livre em que a vontade da mulher não fique atrelada a um diagnóstico profissional.
– Acabar com a condena social ao aborto, pela qual se subentende que aquela que o pratica fica afetada emocionalmente, sendo por isso sometida à terapia psicológica. Desprofissionalizar os espaços feministas.
– O encaminhamento psiquiátrico e psicológico para as companheiras a partir de espaços/organizações feministas é um vício neoliberal que reproduz lógicas clientelistas, retirando-nos a possibilidade de articular a cooperação e o apoio entre iguais.
– Apagar o limite entre usuárias e profissionais.
– Construir espaços e projetos coletivos que subvertam as relações verticais entre profissionais e usuárias.
– Desprotocolizar as relações humanas − que sejam as próprias comunidades que criem suas próprias medidas visando abordar a violência do ambiente, sem esperar respostas homogêneas e padronizadas a partir da institucionalidade. Pelo direito ao trabalho das mulheres psiquiatrizadas, dissidentes e velhas.
– Nós, as mulheres loucas, ficamos excluídas do mercado de trabalho, portanto a única opção que nos resta é o trabalho informal e/ou a pensão por invalidez, sendo que ela constitui mais uma forma de exclusão do trabalho formal, além de ficarmos assim condicionadas à adesão aos tratamentos psiquiátricos. Recusamos qualquer tipo de avaliação psicológica para termos acesso a empregos ou cargos públicos, dado que essas aferições não medem as competências e habilidades necessárias para exercer qualquer tipo de função. As avaliações psicológicas estão a serviço de um modelo econômico de exploração que busca homogeneizar a população num ideal de trabalhadora bem-comportada e eficiente, com tolerância à frustração e à exploração, e excluindo todas aquelas não se ajustem a esse modelo.
– Desneoliberalizar o bem-estar – ele não é psicológico, é social.
– Acabar com a padronização e a valorização das emoções. Abolir a ideia da felicidade como bem de consumo ligado ao negócio da Saúde Mental e à indústria farmacêutica. Não à patologização dos processos vitais femininos (parto, lactância, lutos, abortos).
– Acabar com as práticas que violentam as mulheres usuárias dos Serviços de Saúde Mental. Não à esterilização compulsória das mulheres com diagnósticos psiquiátricos. Não ao eletrochoque. Não às internações compulsórias. Não à judicialização e à coerção das mulheres que resistem aos tratamentos psiquiátricos e/ou psicológicos. Não à contenção física e farmacológica.
– Chega de obstrução das maternagens dissidentes.
– Descolonizar a Saúde Mental.
– Questionar o extrativismo dos saberes ancestrais, cooptados por visões eurocêntricas e coloniais de lógicas produtivistas e reprodutoras do modelo neoliberal.
– Como para a Coletiva não é a mesma coisa louca que louco, reivindicamos o direito à loucura e as subjetividades diversas por meio do acobertamento mútuo, do ativismo e da politização dos nossos mal-estares subjetivos. Apostamos no reestabelecimento dos vínculos solidários, na cooperação entre pares e na luta coletiva.
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Não é a mesma coisa ser louca que ser louco.
Há integrantes do grupo Libremente que pensaram em formar uma coletiva feminista antipsiquiatria para mulheres loucas, usuárias, ex-usuárias dos dispositivos psis, cuidadoras e interessadxs na temática em 2016. Em janeiro de 2017, elas formaram a coletiva No es lo mismo ser loca que loco, saindo do Libremente no final desse ano. Desde então, as linhas principais de ação são, por um lado, o ativismo de rua, como forma de trazer à tona as demandas das loucas e a denúncia da psiquiatria patriarcal. E, por outro lado, o apoio mútuo ou acobertamento entre companheiras que estiverem atravessando algum sofrimento psíquico.
Tradução: Damian Kraus