Escrever como transgressão

Na divisão do trabalho que corresponde às sociedades patriarcais, a escrita foi uma atividade masculina. As Musas eram deusas que inspiravam o homem (“Canta, ó deusa, a cólera de Aquiles, o Pelida”.[1] , começa a Ilíada) e às vezes se encarnavam em uma mulher (“Poesia é você”[2] , disse Bécquer), mas o trabalhador da palavra escrita era sempre o ho-mem. Neste contexto, as mulheres que escreveram foram as primeiras transgressoras. Como toda transgressão, esta carregava o fantasma do castigo: Safo se suicidou, assim como Virginia Woolf, Alfonsina Storni, Sylvia Plath, Alejandra Pizarnik, Marta Lynch etc. O suicídio parecia o castigo inevitável para aquelas que ousaram romper a norma não escrita, implícita, de que o verbo escrito é território do homem, não da mulher. Esta, tradicionalmente passiva, é um objeto sobre o qual projetar as fantasias dos homens, ativar seu imaginário, mas nesse repartir de papéis não pode desenvolver seus próprios fantas-mas, seu próprio imaginário. Quando se coloca, se erige como representante de si mesma e de sua voz, transtorna as configurações tradicionais e cria confusão. Como é que uma mulher, ser passivo, receptáculo das fantasias dos outros, se atreve a competir com o homem, a disputar seu papel de criador, de potencializador de fantasmas? Não tínhamos concordado que as mulheres eram os fantasmas dos homens?

Acontece que, às vezes, algumas mulheres não quiseram ser só fantasmas e assumiram a atividade da escrita, ultrapassando essa barreira, essa fronteira rigidamente estabelecida. E com isso veio a desordem, quer dizer, a loucura. Virginia Woolf estava louca, por exemplo, e precisava do bom Leonard ao seu lado para protegê-la. Sylvia Plath também estava louca, e precisava do porco do seu marido para sobreviver; Delmira Agustini, por sua vez, foi morta por um marido com ciúmes (tanto de um amante imaginário quanto de sua poesia) e ninguém levantou a voz contra este crime porque todo mundo compreende o marido de uma poeta: assassinando-a, matou sua escrita, mas foi uma espécie de crime ritual, de cerimônia expiatória que condenou uma mulher que tinha cometido o delito de ser livre escrevendo e de ser livre amando. De que o marido-assassino de Delmira Agustina se vingou? Não só dos amantes imaginários que ela não tinha, mas da liberdade que deu a seu eros por meio da escrita.

Para os homens, o feito de escrever é outra das manifestações de ter, posto que são definidos social e culturalmente como os seres que têm: homem é quem tem falo, mulher é quem não tem. Escrever, para eles, é outra das representações de seu poder: têm inteligência, valor, imaginação. Por sua vez, quando as mulheres escrevem, a opinião popular costuma atribuir a isso uma carência: escrevem porque não são bonitas, porque fracassaram no amor, porque não tiveram filhos etc. Uma atividade que costuma dar prestígio aos homens, como é a escrita, se converte na carência de algo, quer dizer, numa substitui-ção, quando uma mulher a exerce. Virginia Woolf escrevia porque era feia, por exemplo, embora nunca se diga que Balzac o fazia pelos mesmos motivos, nem Cervantes. Muitas vezes o leitor ingênuo, que participa de maneira inconsciente dessas crenças populares, se surpreende se descobre que uma escritora é bonita. Então ela não escreve porque fracas-sou com os homens? A escrita não é uma atividade compensatória para ela?

Nas concepções sociais e culturais que formam o substrato do pensamento coletivo, escrever é uma atividade fálica não só porque tradicionalmente é desempenhada por homens, mas porque significa nomear, batizar, revelar, descobrir, isto é, conquistar, e a conquista é uma tarefa masculina. Os escribas, que foram os escritores mais antigos, tinham como função testemunhar o presente e descobrir o futuro, tarefas fundamentais em uma sociedade. Nunca existiu um escriba mulher. Como iam deixar papéis tão importan-tes nas mãos de mulheres? Roubar o falo da escrita é uma transgressão às convenções sociais, um poder que subverte a ordem pretendidamente natural das coisas e dos ofícios.

Se o feito de escrever confere ao escritor homem uma auréola de sugestão pessoal adicional, já que é um dom a mais ao dom congênito de ter um falo, o feito de escrever questiona, ao contrário, a identidade da mulher que escreve. Se exerce o poder da escrita, já não é uma mulher desprovida de, definição tradicional e ainda freudiana da mulher, mas uma mulher com. Perigosa por ser independente, perigosa por ser inclassificável, perigosa não só porque seduz (seu papel tradicional), mas porque conquista (dom adquirido pela sua atividade). Ponhamos, então, um guardião a seu lado, um homem que acentue sua debilidade, ponhamos um Leonard Woolf; ponhamos um marido ciumento, Delmira Agustini; ou medíocre, Sylvia Plath. Escindidas entre a transgressão e a ordem, entre sua rebeldia e o submetimento, entre seu desejo imprevisível e a necessidade de estruturar-se socialmente, terminarão se jogando no mar ou internadas num manicômio.

Resta a possibilidade, muito menos neurótica, claro, de assumir a ruptura, a transgressão, com alegria e sem temer os fantasmas do castigo. Porque não podemos esquecer que os homens, que são quem instauram as leis, também são aqueles que sempre as transgrediram: proíbem matar para matar, proíbem roubar para roubar, proíbem desejar a mulher do próximo para alimentar seu desejo pela mulher alheia, proíbem a espoliação da natureza para melhor acabar com ela; as transgressões masculinas não vendem mais, em quase nenhum mercado, porque durante muitos séculos estabeleceram uma lei para que fosse vulnerada. Portanto, é um bom momento para se começar a vender as transgressões femininas, que além de tudo são transgressões a normas que não foram fixadas por elas.

 

Tradução por Anita Guerra

Sobre a autora

Cristina Peri Rossi nasceu em Montevidéu em 1941 e vive em Barcelona desde o ano de 1972, quando fugiu de seu país natal para escapar à perseguição política da Ditadura Militar. Poeta, jornalista, escritora e tradutora, foi ganhadora do Prêmio Miguel de Cervantes de 2021.

Notas

[1]Homero. Ilíada. Trad. Frederico Lourenço. São Paulo: Penguin Companhia das Letras, 2005.

[2]Bécquer, Gustavo Adolfo. Rimas y leyendas. Barcelona: Penguin Random House Grupo Editorial, 2016. Tradução minha.

 

Sumário