Escrever contra si mesma: uma microtecnologia de subjetivação política1

val flores2

Tradução de Ana Luiza Braga

Poderia alguém escrever contra si mesma? Que processos de desidentificação sobre o eu se ativam? Que empreendimento político poderia ser deduzido de uma escrita que litigue contra si, contra a Una, contra a sedimentação de um eu que tende a estabilizar-se?

Que potência assume uma política de escrita que se constrói como um contramapa da identidade? Ou como os mapas ocluídos pela identidade?

Poderia tal política articular-se como uma modalidade para traçar linhas de deslocamento e de fuga do já constituído? Por que esta emergência de uma fluidez que se volta contra o eu estabelecido, contra uma ordem da subjetividade modulada pelas disciplinas do corpo e pelos discursos normativos?

O que significa escrever contra si mesma para uma escritora feminista, dissidente sexual, branca, tortillera,3 trabalhadora precarizada, não mãe, habitante de uma urbanidade periférica? Como afetaria a geopolítica cultural da escrita dos corpos, essa disposição de lugares alocados que limita as práticas e as formas de saber e de prazer?

Não se converteria num despropósito negar/deslocar/fissurar os sentidos uma vez afirmados? Ou poderia isso se constituir no impulso vital de um pensamento capaz de não se submeter mais que provisoriamente aos postulados do inteligível?

Que poéticas insubmissas se ergueriam sobre a perfuração do signo-sujeto? Que coordenadas semiótico-materiais para o ativismo elas tornariam possível/habilitariam?

Não posso falar com minha voz, mas com minhas vozes”, escreve Pizarnik (2001; 264). É uma das minhas aprendizagens, uma das mais desconfortáveis, mas a mais frutífera que vivi. Este escrito nasce da convulsão por essas minhas vozes que querem falar, vozes que se reconhecem como contraditórias e que registram experiências múltiplas, heterogêneas e dissímiles dos lugares pelos quais transito e transitei. Essas vozes, no entanto, recolhem o despontar de um pensamento que se pressupõe contingentemente crítico na cotidianidade, nessa temporalidade de atuação onde prevalecem e se desenvolvem os sentidos mais hegemônicos.

As perguntas iniciais avizinharam-se com tom balbuciante durante quase um ano, recolhendo as preocupações que demandava minha vitalidade subsumida a um caos escritural que depunha as pretensões das instituições linguísticas de demarcar – e respeitar – os limites do gênero mais adequado ao fluxo das grafias que brotavam do meu corpo. Um corpo cuja carne sensível era atravessada por modos de fazer, por modos de fazer a si mesma, em embate entre si e, ao mesmo tempo, com modos que até o momento não haviam sido explorados porque eram impensáveis. Uma subjetividade sacudida por questionamentos de práticas de diversas procedências, como:

minhas práticas políticas como ativista lésbica e feminista queer,4

minhas práticas pedagógicas como professora numa escola onde a pobreza espreita com a morte os corpos das meninas e dos meninos,

minhas práticas de escrita que fazem colapsar os modos habituais e mais convencionais da literatura,

minhas práticas de pensamento que se deslocam das tradições e instituições acadêmicas de cuja legitimidade prescindem, denunciando, ainda assim, os custos da falta de reconhecimento, entre outras desautorizações,

minhas práticas amorosas que sucumbiam diante de novas situações em que outros desejos irrompiam sem mais nem menos, retalhando os modos de amor praticados até o momento,

minhas práticas sexuais que fantasiavam com abrir-se à multiplicidade do gozo que havia desterritorializado o prazer sexual da genitalidade.

Exercer a insolência contra si mesma requer uma móbil e flexível musculatura da linguagem.

Se a escrita é uma tecnologia com capacidade de subjetivação, que constrói sujeitos e sujeitas, os efeitos políticos deste exercício de experimentação de contra-escrita são insuspeitos e poderiam contribuir com um minúsculo sopro de renovação, tanto num movimento feminista que, sinto, abdicou da radicalidade de seus horizontes políticos, convertendo-se em presa da maquinaria estatal, assim como para um feminismo minoritário – que eu denominaria under, por sua pulsão de capilaridade – que o corpo sustenta como alicerce do discurso e território de exploração de desejos talvez ainda ininteligíveis e/ou censuráveis para o próprio movimento.

Armar/desarmar/montar/desmontar palavras não é um jogo do qual se sai ilesa ou sem cicatrizes; trata-se de uma aposta arriscada por fazer correr o sangue sem o adestramento do latido afim à utilidade e à mais valia do exercício literário.

Intervir nos modos de fazer-se sujeita com um trabalho de invenção de um modo de pensar que se situe no espaço da discrepância, do desafio de enfrentar as perguntas encerradas pelas exigências da estabilidade da identidade, é tornar a escrita uma tecnologia política de subjetivação contra-hegemônica e um ato de resistência na carne da palavra. Como diz Donna Haraway (1999): a teoria é corporal, não é algo distante do corpo vivido; pelo contrário. A teoria é qualquer coisa menos descorporificada.”

Como dispositivo de pensamento, a escrita é usada para construir relatos. Assumir o espaço da página como registro de criação é o que vou tentar fazer ao construir um relato para contar o que acredito ser uma verdade localizada, corporificada e contingente, e ao mesmo tempo, ensaiar uma modalidade des-essencializante da escrita que tenha proximidade com uma reprogramação dos códigos de escrita do eu.

A subjetividade política emerge precisamente quando o corpo/a subjetividade não se reconhecem no espelho. Neste sentido, o des-reconhecimento, a desidentificação é uma condição de emergência do político como possibilidade de transformação da realidade”, afirma Paul B. Preciado (2018; 474). De algum modo, cada uma das práticas enunciadas pigmentam vários dos mundos em que se configura minha subjetividade, nos quais a dissonância fez estalar as certezas que davam sentido à minha existência.

Uma amálgama de práticas que traçam vetores de vida, intensidades que remetem às desavenças vibráteis na própria carne, aos modos em que nos fazemos e desfazemos na malha instável e ambivalente dos episódios cotidianos. Ativismo lésbico feminista queer, trabalho pedagógico, escritas múltiplas, lógicas desejantes, relação amorosa, leituras heterogêneas, modos de transar, formas de pensar, entre outras práticas, vão formando uma liga subjetiva com modulações e contornos dessemelhantes.

Vejo com espanto e preocupação como o Estado traduz as demandas das mulheres em novos dispositivos de controle ou normalização; como se instala uma forma hegemônica de ativismo que se converte numa gestão de discursos e recursos, numa corrida pelos financiamentos; como o movimento, maioritariamente, articula-se em torno da vitimização e do perigo, mais do que em torno dos prazeres; como os argumentos feministas, muitas vezes, vão articulando-se com os discursos da direita sobre a insegurança; como o lema o pessoal é político” se converte numa enunciação descorporificada de formas agudas de experimentação política; como a ação política está dominada pela política da representação e sua consequente totalização da identidade mulher”; como a institucionalização do discurso feminista deixa a pele de fora e torna-se uma nova prescrição, em algumas vozes autorizadas em detrimento de outras, em corpos deslocados pela centralidade de outros, em violências negadas pela hipervisibilidade de alguns sofrimentos, o que faz com que certas formas de dor sejam reconhecidas e amplificadas, enquanto outras se tornam impensáveis e desafetadas.

Do meu ponto de vista – sempre parcial, interessado e discutível –, o corpo e suas afetividades topográficas foram deslocados das prioridades políticas do feminismo. A compulsão ao desvario e a um pensar da noturnidade não são bem vindos no campo de manobras do discurso programático.

Atuo como feminista há não muito tempo – desde o ano 2001 – e hoje posso dizer que grande parte do heterofeminismo, cuja composição registra uma quantidade significativa de mulheres lésbicas, é fortemente lesbofóbico. E segue construindo um denso silêncio em torno das lésbicas e das diferentes e múltiplas expressões de gênero que performamos, chegando até a sancionar por meio do distanciamento, da invisibilização e da reprovação; especialmente as formas mais masculinizadas, bem como as mais feminizadas.

Se não disser mulher, ferirei de morte o feminismo? Não quero submeter-me a um nome que, em prol de libertar, torna-se uma corrente invisível da significação monótona e normativa. No cânon da corporalidade feminista clássica há interdições que pulsam as teclas de uma plataforma sexopolítica-cultural mais convidativa. Sou uma epígona dos rastros daquelas políticas e estéticas que situam a subjetividade política, a experiência do erotismo, os usos e a invenção dos prazeres do corpo, o cuidado de si e das outras, uma política amorosa, mas não romântica, uma conexão das diferenças, como um exercício epistêmico de descentralização.

Identifico-me com correntes minoritárias dos feminismos, que não concentram sua atenção exclusivamente nas demandas ao Estado, que constroem políticas do desejo, de outros modos de vida, de outros corpos, de outros afetos, alternando entre políticas afirmativas da identidade e políticas pós-identitárias, ao circular pelas periferias e mergulhar nas expulsões que toda operação identitária produz, desarmando a cada passo, em cada gesto, os binarismos fundantes da tecnologia heteronormativa. Isto supõe não desdenhar nem ocultar que dentro dessas perspectivas há uma série de temáticas, fios de discussão, correntes subterrâneas de ideias-forças que as atravessam e entrelaçam, com contradições, enfrentamentos e diálogos encenados ou latentes. Excita-me um feminismo lúdico, criativo e irônico que não se retrai na denúncia, mas que se desdobra numa imaginação política radical, ao mesmo tempo que nos dá notícia da rescisão do pacto heteropatriarcal, e que é capaz de rir de si mesmo.

Um feminismo sob a modalidade de uma rede molecular de encarnações subjetivas, corporais e desejantes – fundamentalmente de lésbicas, que me autorizaram, contiveram, amaram e interpelaram com textos, afetos, ações, imagens, perfomances etc. – estimulou-me a acender e compreender o vigor de sua potência como práxis vital, cujo horizonte imediato é mudar a própria vida. Se dissolve-se a dimensão da afetação subjetiva e corporal, todo pensamento e movimento emancipatório e/ou de contrapoder se torna discurso consumível e digerível. Já sabemos quão fácil e rapidamente os saberes subjugados são reapropriados e se tornam forças de normalização e de naturalização. Este processo é bem sintetizado no ensaio de Preciado (2018; 117-118):

Lauretis afirma que só é possível falar em “teoria” feminista quando esta questiona os próprios fundamentos e interpretações críticas, seus termos políticos, suas práticas linguísticas e de produção de visibilidade. Lauretis pergunta-se qual é o sujeito político que o feminismo – como discurso e prática de representação – produz. Longe de qualquer autoindulgência, sua conclusão assume a forma de uma advertência extremamente lúcida: o feminismo funciona, ou pode funcionar, como um instrumento de normatização e de controle político se reduzir seu sujeito às “mulheres”. Sob a aparente neutralidade e universalidade do termo “mulher”, esconde-se uma multiplicidade de vetores de produção de subjetividade: sexo, raça, classe, sexualidade, idade, capacidade, diferenças geopolíticas e corporais etc. Em termo lauretianos, o sujeito do feminismo é inevitavelmente excêntrico, não coincide com “as mulheres”, mas se apresenta como uma força de deslocamento, uma prática de transformação da subjetividade.

Neste sentido, queria mencionar um termo profusamente disputado por distintos setores, inclusive antagônicos: a autonomia, uma prática que conduziu meu ativismo político. A ideia de autonomia que defendo não tem correspondência com um exterior” mistificado, mas remete a processos de autoinstituição coletiva sempre inacabados, cujas práticas extravasam os dispositivos de captura dos sistemas de mediação institucional. Tais rebaixamentos se produzem ao custo de uma mutação constante: mudanças de nomes e de posição que obrigam a reinventar a cada vez as estratégias de afirmação e conflito após ocasionais retiradas táticas em prol da recomposição, da dissolução ou da latência. Esse processo contraditório, conflituoso e contínuo de autoinstituição e autoinvenção das práticas é decisivo na produção política e estética feminista e da dissidência sexo-genérica.

O histórico debate do feminismo latinoamericano entre institucionais e autônomas costuma estar atravessado, com excessiva frequência, por um pensamento binário cuja centralidade é dada pelo par dentro/fora. No entanto, “fora” não é mais do que uma multiplicidade de instituições, movimentos, tendências. Para além de um fora, o que existe é um acúmulo de possíveis multirreferenciais, polissêmicos e inominados. Por isso, se não existe um fora, tampouco existe, estritamente falando, um dentro. O espaço é definido por seus movimentos e pelos movimentos das/dos demais. As práticas autônomas têm mais a ver com uma fissura, com o efeito de uma série de deslocamentos das oposições binárias, do que com um lugar em particular, tal como as definem alguns usos fetichistas do termo. A propósito, Preciado (2014) assinala:

[…] os saberes pós-coloniais, queer e trans entendem os regimes de normalização colonial ou sexual como um campo de forças sem um exterior possível. Há uma pluralidade de mundos que não estão completamente exteriores uns aos outros. O não-lugar ou o contra-lugar de emergência dos saberes situados é a fronteira (Anzaldúa, 1987) […] Encontram-se aqui narrações contracoloniais que não acentuam o autóctone mas, antes, as zonas de contato, as identidades transversais e os espaços híbridos.

Como outras práticas que mantêm, por princípio, uma posição equidistante às estruturas de poder institucionais, a autonomia é uma práxis situada, cujo exercício se desatrela da universalidade da ação, formulada num contexto histórico específico.

O desenho geopolítico de nosso país, articulado sob o eixo Buenos Aires-interior, faz das assimetrias uma naturalização das desigualdades. A casa das diferenças” sonhada por Audre Lorde, tão habitualmente citada por acadêmicas e ativistas como sede da multiplicidade e cruzamento de opressões, não pode ter um domicílio fixo, embora saibamos (sobretudo as habitantes de outras cidades) que costuma ficar na capital. Viver a 1.200 km da cidade de Buenos Aires não é só uma questão de distância longitudinal – é aprender a sentir, entre outros efeitos, que a insignificância é a marca do que o imaginário moderno e colonialista chamou de interior.

Como latinoamericanas, podemos des-centrar-nos do norte – como espaço de imposição de um centro do qual tudo emerge –, mas há outros centros dos quais é preciso deslocar-se, não só para definir-nos fora deles, mas também para criar o estranhamento necessário que perturbe sua própria constituição e legalidade. Nas palavras de Helena Chávez Mac Gregor5 (2009):

Nos des-centramos não para estabelecer um inimigo, mas para inventar um sul. Buscamos o sul, não como uma construção geopolítica que nos situe como bloco de periferias pós-coloniais para reivindicar o poder antagonista da margem, mas como um posicionamento político que faz de nós as próprias fissuras do sistema, que nos torna as rupturas e os excessos que já não são negociáveis. Dizemos sul assumindo que este pode estar em qualquer geografia e em qualquer latitude, porque o sul não é uma identidade a partir da qual podemos nos legitimar, mas uma maneira de afirmar nossa participação nas forças transbordantes que trabalham como um vírus, que incidem na produção de outras histórias, de outras afecções e de outras experiências políticas a partir da contaminação e da propagação.

Meu trabalho como professora de Ensino Fundamental se dá numa escola pública onde a pobreza espreita os corpos das crianças com a morte, simbólica e material. Por isso, minhas práticas pedagógicas estão atravessadas pelos dispositivos de disciplinamento do Estado – ou do que resta dele na reconversão neoliberal –, mas procuro um exercício de crítica da prática, por meio de uma política da escrita que abra o horizonte do debate em torno do fazer educativo, que não é mais do que fazer sujeitos e sujeitas, configurar processos de subjetivação. Isso requer a abertura a um tipo de tarefa que precisa de olhares inquietos que se movam de um lugar a outro, mais do que de respostas fixas ou de certezas inquestionáveis. Então, escrevo como modo de reativar possibilidades sobre uma experiência aberta, sinuosa e turva como é o ato educativo enquanto acontecer político.

A escola é uma espécie de espartilho que reduz as formas de pensamento e ação sobre o ensino a regulações técnicas dirigidas a fins previstos, administrando aqueles procedimentos que realmente funcionam como aceitáveis e normais.

O emaranhado de discursos e práticas escolares nas quais se desenvolve a prática pedagógica tem um alto grau de cristalização, com uma potente carga de significados hegemônicos. A desnaturalização do óbvio, do lugar comum, sucumbe sob a hierarquia do aspecto técnico-instrumental.

A sociedade toda assiste à destituição do sentido estatal da escola, a despeito de nós, trabalhadoras da educação; e por mais resistência que ofereçamos, trata-se de processos macropolíticos que nos transcendem e configuram o tempo histórico em que vivemos.

Nós, professoras, sabemos de muitas crianças e adolescentes que se tornam fugidios a toda prescrição escolar; esses garotos e garotas que hoje têm entre 10 e 18 anos constituem a geração que nasceu quando as instituições do Estado e o sentido do público desmoronavam estrepitosamente sob o peso regulador das políticas neoliberais. Uma lógica esgotada de pensamento e ação se faz sentir de forma assombrosa nos espaços escolares: a que fundava o comum a partir de uma maquinaria de funções e lugares pré-estabelecidos. O terreno baldio institucional expandiu-se aceleradamente. Eles/elas e nós somos subjetividades à intempérie”, transitando o desmantelamento daqueles segmentos que deram forma sólida à existência em certo momento histórico, a essas subjetividades do progresso, sovadas em projeções transcendentes.

Percebemos, muitas vezes, a ilusão de uma educação higiênica”, sem paixões, sem conflitos, sem injúrias, sem violências, sem crueldade, politicamente correta, que não afeta ninguém. Fingimos que se aprende e se ensina no formato escolar.

Nós, as professoras, trabalhamos sobre a destituição do sentido tradicional da escola, em alguns casos aproveitando os escombros como precários materiais a usar. Formas de vida, de corpos, de gestão da sobrevivência cotidiana, de alicerces afetivos habituais, que para nós, como trabalhadoras da educação, ainda se encontram registrados no terreno do impensável, para muitas e muitos dos habitantes da escola já é hábito. Na contramão, a rotina que reina nas escolas costuma provocar a degradação do sentido do trabalho num eterno presente sem fissuras.

Observa-se o debilitamento da consciência do sofrimento coletivo, razão pela qual cada uma se refugia no seu fazer, isola-se e diminui a crítica, avançando em direção à inércia e à passividade queixosa. Esse tipo de prática que anestesia encurrala as possibilidades de um pensar político.

Diante dessas presenças vulneráveis, perplexas, da densidade de uma vida permeada pela violência – a das crianças, a das docentes – a escola torna-se um espaço cuja habitabilidade depende das pessoas que forem responsáveis por ele e da tonalidade que suas presenças imprimem nele. Já não somos subjetividades de confinamento, mas existências a céu aberto, expostas a toda contingência.

Todo tempo de incerteza é também um tempo aberto à criação, então esses momentos de esgotamento são os momentos privilegiados de instituição prática de novas ficções. Por isso, não devemos pensar noutra coisa, devemos pensar de outro modo.

Após o desmantelamento do Estado, sua condição se altera. Ele já não constitui o fundamento constituinte das experiências, mas uma sucessão contingente de processos de configuração e dispersão. O Estado não desaparece como coisa; antes, esgota-se a capacidade que essa coisa tinha para instituir subjetividades e organizar o pensamento. Então, pensar sem Estado é uma contingência do pensamento – e não do Estado –; nomeia uma condição de época como configuração possível dos mecanismos de pensamento. Pensar sem Estado não se refere tanto ao cessamento objetivo do Estado, mas ao esgotamento da subjetividade e do pensamento estatais” (Lewkowicz, 2004; 10).

O declínio da escola como instituição disciplinar do Estado-nação nos desafia a habilitar o espaço dessa mesma escola como capaz de produzir novas configurações, novos planos de experiência a partir das múltiplas expressões do real.

Se nos abrimos ao questionamento, à problematização, à indagação, a prática se traduz num lugar de experimentação aberto ao criativo, ao inesperado, ao que está por acontecer, sustentando a relação pedagógica num modo de trabalhar que toma forma no cotidiano, mais do que em resposta a um plano pré-concebido. Se subjetividade significa formas de vida, resistimos inventando outros modos de viver em e a partir dos espaços que habitualmente habitamos, sem garantias fundadoras nem itinerários fixos a percorrer.

Desse modo, a busca por percursos pedagógicos requer desdobrar uma política do acontecimento, uma política da experimentação, que não pode existir senão ao comprometer-se com a proteção e a promoção dos acontecimentos que vão tensionando sua práxis constituinte, ainda constituinte de si. Esta exploração exige uma disposição poética, de criação estética, porque reconhece, de início, que sua prática concreta não tem uma lógica e uma metodologia cunhadas de antemão, e que seu método, assim como o sentido de suas realizações, só podem ser alcançados por meio de implicações e autorreflexões que, à força dos acontecimentos, serão sempre novas. É poética porque configura momentos que reacomodam os materiais sensíveis, alterando sua posição para abrir novos sentidos que se rebelam contra o estabelecido, a partir de sua capacidade de afetar o tempo e o espaço, de criar experiências.

E é esta mesma poética da ação a que nos exige convocar nossas potências e virtualidades por meio de dispositivos pedagógicos, vocabulários experimentais, equipes de trabalho e técnicas de governo de si e de outras/os6 que, ao ganharem forma, fazem com que ingressem na esfera das perguntas e respostas, no espaço das tensões e problemáticas.

O ativismo feminista e sexo-genérico não requer um lugar particular e exclusivo para seu exercício. A prática política configura-se nas geografias mínimas que traçam os hábitos da existência. Se falo de prática educativa, falo de prática política, porque isso implica criar as condições de percepção, de sensação, de afecção, de saber, de poder e de prazer, a partir das quais geramos experiências.

Escrever é um caso de devir, sempre inacabado, sempre em via de fazer-se, e que extravasa qualquer matéria vivível ou vivida. É processo, ou seja, uma passagem de Vida que atravessa o vivível e o vivido”, afirma Gilles Deleuze (1997; 11). Para mim, o ensaio tem sido o devir escritural da dissidência, transitando à margem dos convencionalismos impostos pela teoria. Assim, entregando-me às ondulações do desejo, tentei construir poéticas do êxtase tortillero a partir do questionamento da heterossexualidade como macrocódigo semiótico, como instituição política.

A escrita é um apaixonamento que me extravasa e traduz os limites do vivível até o momento numa maquinaria de visibilização das pulsões heréticas que friccionam a marca petrificada da letra. As práticas de escrita e de leitura sempre estiveram vinculadas aos deslocamentos subjetivos e políticos, a minhas trajetórias vitais. Como prática de autoerotismo, a escrita capitaneia uma busca nas bordas, nos interstícios onde as práticas e saberes se confundem, para encontrar aí, onde tudo ainda está por ser inventado, a força para desencantar-nos desta paisagem de mundo e desacomodar o que está solidificado, silenciado e invisibilizado.

A escrita é o lugar da ruptura da presença que torna evidente a alteridade, a contaminação, a impossibilidade de imunização. Sua experiência é a de uma expulsão do lugar próprio, do questionamento de toda permanência, de um movimento de subtração do presente; não de uma nova subjetividade frente ao eu, mas daquilo que o excede.

O exercício da escrita pouco tem a ver com o resguardo na segurança de um eu, um amparo frente às dificuldades do mundo da vida; trata-se, antes, da abertura a uma ameaça, ao risco de tornar-se outra. A escrita tem sido um espaço de confronto e diálogo para buscar, a partir da própria prática, encarregar-me de mim/nós mesma/s; da minha/tua/nossa ferida, do meu/teu/nosso dano, do meu/teu/nosso medo, do meu/teu/nosso corpo, do meu/teu/nosso afeto mas, sobretudo, do meu/teu/nosso prazer e do meu/teu/nosso desejo. Por isso, para mim, as práticas literárias – como a poesia – são parte das práticas de pensamento, porque são experiências da estranheza.

Os textos que escrevemos são constituintes dos nossos processos de conhecer e de dar a conhecer. Consequentemente, o modo como escrevemos tem a ver com nossas eleições teóricas e políticas, e com as preferências afetivas. Aprender a operar com o transitório, o mutante, e também com o local e o particular, sugere reconhecer uma certa modéstia e implica praticar o autoquestionamento. Um elemento nevrálgico, embora às vezes intimidante, desta modalidade de produção de escrita é a admissão da dúvida e da incerteza, a partir da qual o/a leitor/a é chamado/a mais fortemente a intervir ou a tomar posição, com a possibilidade de que a leitura se transforme num processo mais provocativo e instigante.

Coerente com a crítica à lógica dos binarismos, ensaia-se a produtividade de pensar que uma coisa pode ser, ao mesmo tempo, isso e aquilo, lidando com as contradições que emergem. Como bem o descreve Nestor Perlongher:

[…] reinventar cenas tratando de captar o que havia por baixo ou por dentro, ou seja, não se contentar com descrever o que “se passava”, mas pescar a intensidade, os fogos de palavras, sempre desfiguradas, misturadas, transtornadas, que conseguissem minar a prisão do sentido já dado de antemão – a ordem do discurso, intuindo deliberadamente que o que nos sufoca, na cadeia de icebergs dos dias, é uma ordem de sílabas. Trata-se, afinal, de uma luta, solitária e atroz: deformar tudo, desconfiar sempre dos sentidos dados, e, simultaneamente, deixar-se… deixar-se arrastar pelo que chega, pelo que nos sacode ou nos faz tremular (1997; 140).

Diante da singularidade destas circunstâncias e neste emaranhado de modos de fazer-me, vi-me sacudida por outros desejos sexuais insistentes, ou talvez, e mais provavelmente, tive vontade de afirmá-los nessa obstinada instigação. Diante dessas incitações, minha relação amorosa mais significativa implodia porque perturbava o modo como tínhamos conectado afetividade e sexo, inundando-nos a perplexidade e o medo ao desatrelar-nos de um padrão sexo-afetivo mais convencional. Fui confrontada pelas dificuldades de viver as contradições e dilacerações entre vontade e afetividade.

O desejo sexual, afirma Teresa de Lauretis, é expulso da formulação da subjetividade política ao ser encurralado pela exigência de coerência ideológica. Por isso, insiste na refratariedade do desejo e no quociente de negatividade que permanece ativo na experiência de todo sujeito sexuado” (2000; 168). Desse modo, a dimensão do desejo não traz identidade, mas divisão, força de desidentificação, desmoronamento, dispersão da coerência.

São experiências que envolvem políticas dos afetos ou estéticas celulares, nos diz Preciado (2014), como “um quiasma onde se cruzam a teatralização do espaço político e a experimentação virtuosa no domínio da subjetividade. Trata-se de um spinozismo das micro-paixões políticas: um laboratório para os peritos no qual os corpos testam coletivamente formas de vidas”.

Neste laboratório de micropaixões encontramo-nos com a pele da(s) outra(s), com as sensibilidades perturbadas, com as formas codificadas dos sentimentos, com escassos registros de outras formas de vinculação amorosa. Agora, se almejamos um devir político desta experiência, é necessário mergulhar num trabalho árduo e microscópico. Um microativismo que desarme as formas totalizantes do amor, a propriedade dos corpos contra a exclusividade sexual, os afetos aderidos a certa genitalidade, as formas de prazer e os usos de nossos corpos que a heteronormatividade gravou a fogo em nossas existências.

Com imagens, domino meu medo, cruzo os abismos que tenho por dentro. Com palavras, torno-me pedra, pássaro, ponte de serpentes arrastando ao rés do chão o que sou, tudo o que algum dia serei”, nos diz Gloria Anzaldúa (2007; 93).

Derivas de um eu explodido, de um dispositivo de enunciação que não fala de um lugar nem de todos os lugares, mas da passagem entre eu-nós-ela, sob os espasmos de suas respectivas negatividades.

Enquanto “‘o si’ é definido, a princípio, como pronome reflexivo” (Ricoeur, 1996; XI), o contra si expressa o caráter hiperbólico da dúvida, de um eu como um patchwork feito de fragmentos de outros/outras. Como falar de si sem se deixar inventar pelo outro ou outra? Ou sem inventar o outro ou outra? Se “eu” e você” são intercambiáveis, não há uma hierarquia viável. Esse eu” e esse você” também são múltiplos porque, como afirma Haraway: O eu dividido e contraditório é o que pode interrogar os posicionamentos e ser tido como responsável, o que pode ser construído e unido a conversas racionais e imaginações fantásticas que mudam a história” (1995; 331).

Sempre há um excedente de sentido que se instaura, mais do que como diferença, num diferir; uma impossibilidade de domínio, um desarmar do olhar abarcador, reassegurador. Rompe-se com qualquer tentativa de fechamento e clausura, desestruturando as tentativas de apropriação e colocando-as em xeque, desativando as tentativas autoimunes do restaurado do eu.

Não há aqui uma pergunta autocontemplativa por “quem sou?” nem “onde estou?”. Trata-se, antes, de nos interrogarmos a respeito de “quem não cheguei a ser?”, inquietude tensionada sob a amarração mais incerta de “quem poderíamos chegar a ser?”, pergunta inerentemente mais aberta, sempre disposta a articulações contingentes e geradoras de fricção. Por isso, não se trata do eu fechado em si mesmo, mas do eu que é ao mesmo tempo as/os outras/os de si mesma/o e de nós. Agora, qual nós? Não se trata de um conjunto de pessoas sob a atribuição de uma identidade, mas de uma configuração subjetiva de pensamentos em uma circunstância; porque mais do que ser um lugar ao qual se pertence, nós é um espaço que deve ser ingressado para ser construído.

A escrita quebra o presente vivo mediante um modo excursivo, porque parte do curso e do sulco da normalidade, remetendo à oscilação que mareia e desloca, rumo ao questionamento da ideia de propriedade, explorando um âmbito oscilante de impropriedade e des-apropriação, abrindo um porvir monstruoso: a monstruosidade do não-predizível, do não-dominável por uma subjetividade segura de si. Neste sentido, parafraseando Perlongher (1997; 139), a escrita é um ramo do êxtase”.

Escrever contra si mesma não é uma prática de inversão ou negatividade cuja finalidade se fecha sobre si mesma, antes, ela toma impulso numa demanda de invenção de novas possibilidades de vida, que estão em jogo nas disputas do eu-ellxs-nós. A ativação de uma produtividade de contra-identidades para habitar-se de outros modos, como retalhos disponíveis daquilo que é jogado fora, descartado pelas instâncias que regulam a normatividade dos corpos. A outra ou o outro (travesti, trans, marimacha, pobre, femme,7 sadomasoquista, promíscua, que vivem com HIV, boliviana, peruana, mapuche, puta, intersexo, atriz pornô, gorda, com deficiência etc.) já não está fora, mas nos constitui.

Escrever contra si mesma é uma exigência para sobreviver neste mundo globalizado, em especial nas geografias subalternizadas como a América Latina, onde nossas vidas são despojadas sistematicamente de valor pelo heterocapitalismo patriarcal racialmente estruturado.

Essa prática constitui um experimento performativo, um exercitar-se ao capturar os destroços” da subjetividade, estimulado por uma política do titubeio, da gagueira, da ressonância e por uma estética insaciavelmente curiosa e de ambição erótica, assim como de responsabilidade com a(s) memória(s). E que deve muito de sua inspiração ao sujeito excêntrico de Teresa de Lauretis (2000; 138-139), que o sintetiza deste modo:

Na minha opinião, a transformação comporta um deslizamento, um verdadeiro deslocamento próprio: deixar ou renunciar a um lugar seguro, que é “casa” em todos os sentidos – sociogeográfico, afetivo, linguístico, epistemológico – por outro lugar, desconhecido, no qual se corre um risco não só afetivo, mas também conceitual; um lugar a partir do qual o falar e o pensar são incertos, inseguros, não garantidos (embora partir seja necessário, porque no outro lugar, de toda forma, não se podia seguir vivendo). Seja do lado afetivo ou do lado epistemológico, a mudança é dolorosa, é fazer teoria na própria pele, uma teoria de carne e osso” (Moraga). É um contínuo atravessar fronteiras […], um voltar a traçar o mapa dos limites entre corpos e discursos, identidades e comunidades, o que talvez explica por que são principalmente as feministas racializadas e lésbicas quem têm enfrentado o risco. Esse deslocamento – essa desidentificação de um grupo, uma família, um eu, uma ‘casa’, digamos até de um feminismo que se mantém unido graças às exclusões e repressões que sustenta toda ideologia do mesmo – é também um des-locamento do próprio modo de pensar; comporta novos saberes e novas modalidades de conhecimento que permitem uma revisão da teoria feminista e da realidade social a partir de um ponto de vista que é ao mesmo tempo interno e externo a suas determinações. Na minha opinião, esse ponto de vista ou posição discursiva excêntrica é necessário para o pensamento feminista: necessário para sustentar a capacidade de movimento do sujeito e para sustentar o próprio movimento feminista. Trata-se de uma posição obtida tanto conceitualmente como nas outras dimensões da subjetividade: é fonte de resistência e de uma capacidade de operar e de pensar em modo excêntrico sobre os aparatos socioculturais da heterossexualidade, através de um processo de conhecimento insólito” (Frye), uma prática cognitiva” (Wittig) que não é unicamente pessoal e política, mas também textual, uma prática de linguagem em seu sentido mais amplo.

As forças do mundo não param de afetar nossos corpos, redesenhando o diagrama de nossa textura sensível. Essa dinâmica tensiona o mapa imperante e acaba fazendo com que entrem em crise nossos parâmetros de orientação no mundo. É assim que a criação se vincula à escuta do caos e aos efeitos da alteridade em nosso corpo. Ao incorporar os efeitos disruptivos da existência viva do/da outro/a na construção do presente, sem silenciar as turbulências que provoca, emergem novos territórios de sensibilidade, e toma consistência uma cartografia de si mesma e do mundo que traz as marcas da alteridade.

A escrita como tecnologia de produção subjetiva pode tornar-se, assim, um exercício de desprogramação do gênero, tarefa que não é mais nem menos do que escrever o corpo, o que implica – entre outras dimensões – a reeducação e o controle do sistema de reação emocional, dos mecanismos de desejo e produção de prazer que modelam as áreas mais íntimas da existência cotidiana.

O corpo é a plataforma que torna possível a materialização da imaginação política, como assinala certeiramente Preciado (2008; 252):8

Uma filosofia que não utiliza seu corpo como plataforma ativa de transformação vital é uma tarefa vazia. As ideias não bastam. A arte não basta. O estilo não basta. A boa intenção não basta. A simpatia não basta. Toda filosofia é forçosamente uma forma de autovivissecção — quando não de dissecação do outro. É uma prática de corte de si, de incisão na própria subjetividade.

Escrever contra si mesma é um exercício de dessubjetivação, de irrupção de linhas de descontinuidade no que somos, de subtração da cadeia de hábitos mentais e corporais sustentados até o momento. Isso conduz a uma estimulante tarefa de desprender-se de si mesma, que inclui a escala da intimidade, da pele, das palpitações, os sentimentos, os desejos, pois como bem o dizia Cherrie Moraga: De fato, em grande medida, a batalha real contra essa opressão [classismo, racismo, heterossexismo] começa para todas nós sob a nossa pele” (2001).

Pensada como uma microtecnologia de subjetivação política, escrever contra si mesma consiste, por sua vez, em construir uma nova prática visualizadora, uma ótica de efeitos difratários. Através da escrita olha-se o mundo, e a visão é sempre uma questão do poder de ver“. Todos os olhos, inclusive os nossos, são sistemas perceptivos ativos que constroem traduções e maneiras específicas de ver, ou seja, formas de vida” (1995; 327), observa Haraway. Por isso, toda prática visualizadora leva implícita certa violência que busca responder sem demora à pergunta: Com o sangue de quem foram feitos meus olhos?” (1995; 330). Conectar pele e olhos na escrita é uma prática de produção de conhecimento, de construção de mundo.

Herdeira do pensamento feminista, num gesto de amorosidade, eu o reinterpreto e reafirmo a partir do acontecimento, daquilo que ocorre, de um certo agora“. A propósito da experiência de uma desconstrução, Derrida afirma que ela nunca se dá, isso sim, sem amor […]. Começa por homenagear aquilo, aqueles com os que ‘as agarra’ […]. Então, tenta pensar o limite do conceito, até padece a experiência desse excesso, amorosamente se deixa exceder” (Derrida e Roudinesco, 2003; 12, em Skliar e Frigerio, 2005; 18).

Neste sentido, o feminismo me interessa não para prescrever novos modelos de comportamento e ditar que práticas proibir, que condutas contestar, que fantasias vedar, que sexo legitimar; interessam-me os feminismos, assim no plural – para não cair num exercício de totalização –, na medida que constituam uma abertura de possibilidades para mudar a própria vida. E isso significa colocar o corpo não sob a exaltação de um dever ser como premissa, mas de modo a inaugurar a paixão pela invenção, sem ventríloquas ou representantes. Autogestão da própria subjetividade em condições de cumplicidade teórica, afinidade estética, vinculação afetiva e tomadas de posição na trama política e cultural.

Este princípio autocobaia como modo de produção de saber e transformação política“, tal como o define Preciado, expulso das narrativas dominantes da filosofia contemporânea”, gravita sobre aquilo que Donna Haraway entende como uma forma modesta, corporal, implicada e responsável de fazer política. Quem quiser ser sujeito do político que comece por ser rata de seu próprio laboratório” (Preciado, 2008; 248).

No entanto, diante de um capitalismo cada vez mais depredador de corpos e recursos, da rearticulação do patriarcado, da exacerbação do racismo e da xenofobia, do avanço dos fundamentalismos religiosos e de direita, dos efeitos persistentes do terrorismo de Estado executado por ditaduras militares, será um luxo intelectual pensar no prazer, no desejo, nos usos do corpo, quando centenas de milhares de mulheres são assassinadas por seus parceiros, morrem por abortos clandestinos, são prostituídas, raptadas e estupradas, são torturadas e silenciadas, suas vidas são confiscadas pela pobreza e pela fome, seus trabalhos tornam-se cada vez mais precarizados, com salários paupérrimos, ou quando as travestis são perseguidas e assassinadas pela policía, não dispõem de acesso à saúde e à educação por sua identidade de gênero, ou quando as lésbicas são sistematicamente invisibilizadas, negadas em sua existência e condenadas a viver no silêncio e em segredo, ou quando se segue patologizando a transsexualidade ou praticando a mutilação genital na infância intersexo?

Nesta inquietude operam correntes de um pensamento colonial que se torna dogmático sob a condição de que há outras urgências. Nós, latinoamericanas, não podemos pensar e criar prazeres? Às sujeitas subalternizadas não nos resta mais do que ocupar de forma perene e exclusiva o roteiro atribuído na partilha do dizível, isto é: o lugar do padecimento? Porque se há um tropo sobre o qual se direcionam e predispõem todos os mecanismos de constrição, esmagamento e controle, é o desejo. Senti a sanção de certa parte do feminismo por não seguir certo pragmatismo que impregna a maior parte das ações políticas das mulheres. As políticas neoliberais não só privatizaram as empresas e os espaços públicos, mas também o espaço do corpo foi relocalizado outra vez no âmbito privado, produzindo subjetividades encapsuladas pelo medo e pelo consumo. Nesse contexto, a política feminista foi muitas vezes contida em um circuito fagocitante que rejeita a radicalidade de experimentações relacionais, sensuais, extáticas, delirantes.9 Deslocar-se do estado de sofrimento supõe um reconhecimento das condições históricas, mas não sua encriptação como condenação. A emergência de novas formas anômalas de ocupação dessas matrizes históricas é uma tarefa de descolonização não só dos nossos corpos, mas também dos códigos da ação política.

Como não há uma forma privilegiada de oposição, mas uma multidão de fugas” (Preciado), a escrita contra si é uma experimentação mínima, embora veemente, de um modo que rastreia a paixão celebratória dos corpos e as formas ambulatoriais do pensamento, os modos autogestivos da festa e a potência da ferocidade coletiva, estimulando a conexão de uma diversidade de falas e devires. É ousar ser a fonte da discordância, a dona da dissonância, a menina do áspero contraponto”, como escreveu Pizarnik (2001, 349).

A escrita contra si inscreve-se numa modalidade de questionamento persistente dos modos em que somos governadas e aspira a deixar de obedecer, a transbordar as classificações, a praticar a arte da inservidão voluntária, a indocilidade reflexiva, como um possível devir cimarrón10 do feminismo.

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  1. [Texto apresentado no I Colóquio Latinoamericano sobre “Pensamento e Práxis Feminista” realizado no Museo Roca, em Buenos Aires, de 24 a 26 de junho de 2009, organizado pelo Grupo Latinoamericano de Estudo, Formação e Ação em Sexualidade, Gênero e Cultura (GLEFAS) e pelo Instituto Interdisciplinar de Estudos de Gênero (IIEGE) da Faculdade de Filosofia da Universidade de Buenos Aires.]↩︎
  2. Investigadora independente, escritora, docente, ativista da dissidência sexual e performer. Seu trabalho teórico e poético se situa no cruzamento entre as práticas pedagógicas feministas e queer e as práticas artísticas, interrogando as escritas e os corpos nas situações de (des)aprendizagem. Entre suas publicações estão Deslenguada: Desbordes de una proletaria del lenguaje (2010); Chonguitas: Masculinidades de niñas (2013), com fabi tron; Interruqciones: Ensayos de poética activista (2013); La intimidad del procedimento: Escritura, lesbiana, sur como prácticas de sí (2017); Tropismos de la disidencia (2017); Una lengua cosida de relámpagos (2019); Romper el corazón del mundo: Modos fugitivos de hacer teoría (2021); Labiar el desierto (2022) e La borra de la afonía (2022).↩︎
  3. Designação coloquial depreciativa de ‘lésbica’, reapropriada como forma de autonomeação. [N.T.]↩︎
  4. Sobre minha própria interpretação do queer no ativismo lésbico local, sugiro ver: “Potencia Tortillera: un palimpsesto de la perturbación” (janeiro de 2008), disponível em: http://lesbianasfugitivas.blogspot.com/2008/02/potencia-tortillera-un-palimpsesto-de.html.↩︎
  5. Mac Gregor escreve a partir dos limites da filosofia e da arte para pensar e incitar processos de subjetivação política. É integrante da rede Conceptualismos del Sur e da revista Desbordes.↩︎
  6. Em comunicação pessoal em março de 2023, val flores comenta: “Ainda que o texto pudesse ser adaptado aos debates do presente em relação aos diferentes modos adotados pela linguagem inclusiva, naquele momento do ativismo, há 14 anos, o debate no contexto do feminismo local (em Neuquén, além disso) e em castelhano passava pelo questionamento do masculino universal e pela estratégia de usar o feminino.” Embora o texto seja atravessado por discussões transfeministas, optou-se, junto à autora, por manter essa marca de época do debate na tradução. [N.T.]↩︎
  7. Marimacha é uma expressão coloquial usada para designar lésbicas ou mulheres cujos comportamentos são considerados masculinos. Femme, por sua vez, refere-se a lésbicas e outras pessoas queer que se apresentam de maneira feminina. Ambos os termos, pejorativos, foram reapropriados coletivamente como formas de autoidentificação. [N.T.]↩︎
  8. Em seu livro Testo Junkie, Preciado (2018; 85) analisa as transformações do capitalismo contemporâneo e seus efeitos nos corpos, e destaca: “Na sociedade disciplinar, as tecnologias de subjetivação controlavam o corpo a partir do exterior como um aparato ortoarquitetônico, mas na sociedade farmacopornográfica as tecnologias se tornam parte do corpo: diluem-se nele, tornando-se somatécnicas. Como resultado, a relação corpo-poder torna-se tautológica: a tecnopolítica assume a forma do corpo, é incorporada.”↩︎
  9. Processos que possibilitariam o que Suely Rolnik (2009) chamou de “subjetividade antropofágica”, muito próxima à prática da escrita contra si. A subjetividade antropofágica é definida como “a ausência de identificação absoluta e estável com qualquer repertório e a inexistência de obediência cega a qualquer regra estabelecida, que geram uma plasticidade de contornos da subjetividade (em vez de identidades); uma abertura à incorporação de novos universos, acompanhada de uma liberdade de hibridação (em vez de atribuir valor de verdade a algum repertório em particular) e uma agilidade de experimentação e de improvisação para criar territórios e suas respectivas cartografias (em vez de territórios fixos com suas linguagens predeterminadas, supostamente estáveis)”.↩︎
  1. Em comunicação pessoal em março de 2023, val flores explica: “cimarrón significa indócil, bravio, selvagem, embora o uso descontextualizado deste último termo seja problemático. Na Argentina, o cimarrón se relaciona com a campanha rumo ao deserto, um projeto civilizatório do Estado argentino que exterminou os povos originários do sul (embora também tenha havido uma campanha no norte do país) no século XIX, com a participação de militares e fazendeiros. O cimarrón, portanto, constitui-se como um antagonismo a esse projeto civilizatório.” [N.T.]↩︎

Sumário