Arquear as pálpebras

Arquear as pálpebras
Andrea Soto Calderón

‘Será que domestiquei o meu próprio desabamento?’ Com essa inquietação pungente, que faz arquear as pálpebras, val flores inicia seu poema, La borra de la afonía, “esse barulhinho de fenda que pede espaço, que se faz tempo de rachadura na duração da penumbra”¹ . Fico com os olhos úmidos enquanto leio: um murmúrio de fluxos d’água vem para cima de mim, e algo do eco inaudível do desejo se mexe. Algo se movimenta entre as dobras das pálpebras no espaço que sua contração abre, como se nesse pequeno reflexo que brilha estivesse descolando-se uma memória. Novamente se acende aquela imagem que se tornou recorrente nos últimos dias. Essa imagem borrada, que nunca é a mesma, de quando eu tinha quase sete anos e morei uns tempos sob o olhar imponente do vulcão Llaima, sempre no limiar de se alvoroçar, bem pertinho do lago Colico, ou Kolüko, que na língua mapudungum quer dizer águas vermelhas.

Os dias se passavam lentamente, e falar que se passavam é excessivo, porque o certo é que os dias pesavam. Uma espécie de tempo flutuante lançava seu pó na garganta, e ainda hoje esse pesar/passar continua a fazer seu ninho de memória sob minhas pupilas. Naqueles dias eu andava fascinada à procura de pedras suficientemente grandes para
poder levantá-las e ver toda a vida que surgia e se movimentava sob essa imobilidade aparente que elas sustentavam. Suspender as pedras, sustentar seu peso.

suspender o gesto que preenche o _entre, que enche o _intervalo

a imagem fica aberta

Domesticar o nosso próprio desabamento pode fazer com que deixemos de ouvir esse barulhinho da fenda que pede espaço, que deixemos de ver essa vida que se movimenta sob um peso que não sabemos carregar. Que deixemos de fazer imagens pregnantes, que gerem adesão, que surjam de um compromisso intenso com uma situação e ativem outros desejos coletivos, que abram espaços e olhares potenciais.

Não antecipar a imagem

 

 

Suspender a intencionalidade, entendida como a estrutura do ir-para

 

 

se entreter, que é uma maneira de se manter no desvio de sentido

 

se entreter entre as coisas

 

A prática estética é colher formas na suspensão da significação, restos que formarão sua estrutura.

O longo poema de val flores, uma língua à procura de se fazer espaço, me fazia pensar em como se busca uma imagem, como ela se faz espaço. Uma busca com uma língua quebrada, que não se reconhece na língua do mandado, imagens que buscam seus modos de cura, imagens subalternas. Pensar em imagens passa por uma formação que ocorre nas dobras das situações das quais fazemos parte e nos formam, na multiplicidade dos modos de existência. Daí que essa busca passe talvez por atualizar a memória da experiência, o que não quer dizer submetê-la a uma sobreinterpretação de dados, mas atentar para os sentidos corporais e afetivos que ela tem, não apenas linguísticos, pois os sentidos dessas formas visuais se movimentam seguindo um ritmo e uma respiração. Imagens, como diz Silvia Rivera Cusicanqui, para quem os caminhos, por exemplo, são formações visuais, «sentir a presença das montanhas, ouvir as vozes das paisagens, os substratos da memória que nos falam dos picos, lagos e olhos d’água, ou a partir das
suas múltiplas apachitas²* e caminhos»³ , os cantos e as encruzilhadas revelam linhas profundas.

A imagem não se forma de uma vez só. A lembrança se perfila nos flancos da percepção – cria-se à própria medida da percepção. As imagens escorregam na tentativa de fixar seus sentidos, continuam a ampliar suas ressonâncias. Um pensamento por contato que gesta sua racionalidade contra as formas institucionalizadas, um conhecimento que se forma ora como uma força telúrica, ora como um musgo estendido. A imagem não define sua potência por captar com precisão o que há − é um trabalho, uma localização em relação, um processo de articulação que introduz um visível no campo da experiência e que altera o regime de visibilidade, desafiando a própria lógica das suas formas.

Ao contrário de uma longa história de imperativos das imagens, elas não determinam o que nós precisamos ver e nem estabelecem o que devemos pensar, mas abrem margem para que o próprio pensamento aconteça. Em alguns casos, fazem isso mediante deslocamentos ínfimos, em outros, mediante complexas relações entre palavras e imagens, ou introduzindo um questionamento acerca da nossa disposição para dar crédito aos comentários que enquadram o visual. Por um lado, mantêm os elementos representativos; por outro, inserem consigo outros elementos que tendem a dissolver o sentido e a expectativa disposta pela representação. Essa é, para mim, a capacidade de acrescentar poderes que chegam de outros lugares.

Um trabalho que não antecipe as imagens, que possa temporariamente interromper a sua resolução, implica estar aí atenta ao barulhinho de fenda que pede seu espaço; às vezes requer estar ativamente, outras apenas se subtrair, deixar a situação se configurar, suspender as imagens para elas gerarem seus modos de invólucro. Suspender as imagens requer uma capacidade para perceber algo que possa reorganizar tudo, algo que o meio abre⁴. Não é unicamente ficar sentada e observar o fluxo do cotidiano, mas um estar que aporta algo à organização do meio, que explora as possibilidades que esse âmbito contém, resistindo à tentação de antecipar o que possa se formar.

Resistir a um pensamento que se contente vaidosamente com suas próprias ideias e preceitos, que faça caso omisso ao que tem diante, acima ou embaixo dos pés. Isso não é pensar. Fica no máximo às portas de uma tarefa que jamais começa. Embora em muitos casos pareça deixar a consciência satisfeita ao corroborar suas hipóteses iniciais.

 

Pensar é se entregar ao que é pensado, fazer parte do seu movimento.

Criar imagens

Criar é sempre formar sem se ter ideia do que vai vir. É se empenhar, persistir no cuidado para que seja acolhido isso que vem à presença, e que isso possa se conectar abertamente com seu entorno, com outras formas, com outros contornos sem destino. Essa imagem não é um esconderijo de outras formas, uma substituição de algo real, mas a própria forma constituída na ambiguidade do aberto. Nesse jogo é necessária a imaginação como faculdade que intervém, pois não se trata de que as imagens surjam do nada ou que não respondam a determinados graus de organização. O que acontece é antes que qualquer organização aparece diante de nós mais forte do que realmente é porque foi reificada a partir de relações de poder específicas. Além disso, o organizado pressupõe um destino que a imagem deve cumprir, uma questão que a imaginação é capaz de interromper a cada momento para tornar possível.

Uma forma de despertar e também de fazer dormir certos significados passa por destampar um ponto de vista, a sua energia de articulação, como no caso da forma de conhecimento que retorna nos quipos, ou nas linhas soltas da história − que não estão mortas −, e que é também a que torna possível achar essas formas que ainda não têm um modo de existência.

A gesta, a criação e a cura instam a ser tocadas por um vento que arrebata, por um fogo tênue que se acende através da névoa, arrastadas por um tempo cujas costas foram rasgadas. Nesse sentido, criar imagens é um exercício que demanda sustentar situações de não saber, situações não organizadas por um modelo. Nas teorias desenhadas, nos pensamentos balbuciados, na mão buscada, é possível imaginar, imaginar coletivamente, ser imaginada.

Para enriquecer os movimentos das formas, as perspectivas facilitadas pelas remissões ao significante mostram faz tempo seus limites. As formações das imagens abarcam o conceito, mas também o canto, a dança, e pedem outras metáforas, não apenas a da leitura.

A invenção se efetua num sistema organizado, porém requer de vínculos individuais, de apego a situações pessoais, afetivas, contextuais. É um processo que, a partir da atenção de um sujeito aos acontecimentos parasitários que produzem as formas de vida cotidiana, excede o indivíduo em sua forma de sujeito.

Eu me pergunto se a domesticação do próprio desabamento é também o que nos priva do direito a nossas próprias imagens, se a sessão desse espaço e o esquecimento do que pede espaço nos impede formar, precipitar nossos devaneios. Contrariamente à ideia da imaginação como acontecimento extraordinário, a imaginação material é entendida como uma capacidade que deve ser trabalhada, que deve ser exercida para ampliar seu campo e, a partir dele, engendrar realidades, superfícies e adesões. Poderíamos falar que vai justamente no sentido contrário ao modelo do pensamento por definição, e da criação que tem sido a tabula rasa para argumentar que a criação surge na rasura tabula − é raspando as superfícies, no contato intenso com os materiais, onde uma imagem, no seu sentido forte, pode acontecer.

O poder das imagens joga-se em sua estrutura crítica. O consumo tenta saciar esse desejo em forma imediata − é preciso sustentar essa inquietação, não a saciar, para poder acolher o que foi expulso das imagens, que é a possibilidade da sua diferença. O que está em jogo nas operações imagéticas é a capacidade de produzir signos que nunca chegarão a satisfazer um desejo, mas que, pelo contrário, cuidam de tecer separações e vínculos entre quem os troca.

Nesse sentido, atuar «significa se arriscar a não saber o que está se fazendo»⁵ , onde se estabelece um vínculo que não distingue entre passivo e ativo. Anexando algo à palavra, intensificando uma ênfase, marcando um ritmo, desajustando uma velocidade, desviando um destino.

Os referenciais hegemónicos têm múltiplos mecanismos e técnicas para criar consistências imaginárias, e a sua influência é poderosa em nosso desejo e na organização das nossas formas de vida. No entanto, sempre ficam resíduos que não se encaixam, que não se adequam, que incomodam, que excedem. Eis onde cada corpo conta e onde uma imagem pode produzir uma alteração decisiva. Nem tanto no retrato do que ela é, e sim do que poderia ser. A pergunta que não deixa de ressoar na porosidade das imagens é como inscrever materialmente aquilo que não tem lugar. Pergunta que exige não projetar um significado prévio, não antecipar a imagem, suspendê-la, para que em seu movimento se engendre a sua possibilidade.

 

Tradução do espanhol de Damian Kraus

 

 


¹ val flores, la borra de la afonía, Buenos Aires: La libre editora, 2022, p. 7.

* NT: local no caminho, no alto da montanha, para descanso e ritual, na língua aimará (v. livro na nota
abaixo, p. 323).

³ Silvia Rivera Cusicanqui, Sociología de la imagen. Miradas ch’ixi desde la historia andina, Tinta Limón,
Madrid, 2015, p. 222.

⁴ Uma primeira formulação dessas reflexiones na conferência “Suspender a imagem”, no ciclo Secuencias 1, com curadoria de Fernando Gandasegui e Marc Vives, organizado por Fabra i Coats, Centre d’Art Contemporani de Barcelona, 25/11/2022.

⁵ Jordi Carmona, La paciencia de la acción, Akal, Madrid, 2018, p. 58.

Sumário